Dhiego Morais 13/07/2020NosferatuUm ruído estranho ressoa através da ponte velha sobre o rio. Vibrações misteriosas ecoando por meio de um objeto que atravessa a ponte em grande velocidade, rasgando-a em dois planos espaciais. O crepúsculo finaliza um cenário que não deveria pertencer à realidade alguma, dum semitom escurecido e manchado pela despedida do sol da tarde. O som cresce em poder, e, lá do fundo, uma sombra fragmentada ameaça irromper, uma nuvem barulhenta, dotada de fome e medo: morcegos explodem pela saída da ponte velha, seguida por um curto flash humanoide; uma menina derrapando em sua bicicleta.
“O mundo é um ladrão que rouba de você a própria infância e todos os seus melhores cachorros.”
Nosferatu, ou no original Nos4a2 finalmente caiu em minhas mãos, depois de muito postergar sua leitura. Reconhecida como a obra mais aclamada de Joe Hill, o ânimo finalmente surgiu pela combinação de dois fatores difíceis de ignorar: a insistente recomendação de amigos e a ciência de que a série de TV (produzido pela AMC) estava há menos de um mês de estrear!
Publicado originalmente em 2013 no exterior, em Nosferatu Joe Hill guiará seus leitores por uma história de horror natalino. Victoria McQueen é uma garota americana típica que usa sua imaginação para se divertir, enquanto seus pais passam por um relacionamento conturbado: o pai apresenta indícios de cometimento de violência doméstica, ao passo que a mãe sofre com os problemas do alcoolismo. A menina, por si só cresce rebelde.
Vic, entretanto, não aparenta ser uma criança comum. Pelo contrário, a jovem possui um dom especial ligado diretamente à bicicleta que ganhara há pouco tempo de seu pai: Vic consegue encontrar qualquer coisa que deseje; qualquer coisa que esteja perdida, independentemente de se o objeto ou pessoa estejam a milhas de distância. Em sua bicicleta ela atravessa a ponte do Atalho e cruza dimensões.
Enquanto a garota tenta compreender seu dom (e as consequências de usá-lo), Hill nos apresenta Charles Talent Manx, um excêntrico personagem que, assim como Vic, também possui o seu curioso dom: a bordo de seu Rolls-Royce, Charles Manx leva crianças para passear por vias ocultas delineadas por sua mente diabólica, estradas desconhecidas que conduzem a um único e singular destino: a Terra do Natal, lugar no qual nenhuma criança é infeliz! O trabalho de Charles é “resgatar” crianças de lares corrompidos, de famílias que destruiriam os seus futuros e de pais que Manx considera condenados. A viagem pela autoestrada misteriosa, a Via Panorâmica São Nicolau transforma seus pequenos passageiros, deixando-os tão aterrorizantes e estranhos quanto seu imponente motorista.
Com Nosferatu, concluo o meu terceiro livro de Joe Hill, seguido de A Estrada da Noite e Mestre das Chamas, e, como já era de se esperar, não me decepcionei com a aventura de horror tecida pela mente de um integrante da família King.
Dotado de uma escrita ágil e cativante, recheada de personagens bem caracterizados e com uma história densa e complexa, verossímil, Nosferatu entrega um romance que merece seus elogios, configurando-se como uma das melhores obras do autor, de fato.
Ao reconstruir o mito dos vampiros, de Nosferatu, Hill produz uma história viciante, que sabe se apoiar e que consegue mesclar os tempos entre o passado e o presente, enquanto conduz a trama e as personagens por um cenário comum, mas não menos aterrorizante.
“Era um lugar ruim e seu primeiro pensamento foi que, quando a polícia o revistasse, encontraria cadáveres enterrados no quintal dos fundos.”
A trama avança uma série de degraus quando as figuras de Vic e Charles Manx finalmente colidem. Rapidamente, Vic se torna a única criança a escapar do diabólico psicopata. No entanto, Charles não descansará enquanto não conseguir se vingar completamente.
Embora Vic cresça como uma adulta problemática, tendo construído sua própria família sustentada de maneira tênue, é a figura de Charles Manx que rouba parte das cenas. Ainda que reconheçamos sua nítida crueldade e mantenhamos certo grau de desconfiança quanto a sua excentricidade e quanto aos mistérios que cercam sua figura quase mitológica, Manx é capaz de momentos de reflexão, expondo frequentemente seu ideal de mundo e sua visão daqueles que agem como “maus indivíduos”, desvirtuados, à margem de seu padrão de sociedade e de suas próprias necessidades mundanas.
Uma das melhores coisas nesse livro são as referências às demais obras de Joe Hill e, inclusive, a algumas clássicas de seu pai. O leitor atento perceberá conexões com A Estrada da Noite, O Pacto, romances de próprio autor, bem como referências a IT: a Coisa, à prisão de Shawshank, à Torre Negra e a A Dança da Morte. Pesquisando mais a fundo, descobre-se que Nosferatu possui conexões inclusive com obras ainda a serem publicadas pelo autor! E, por fim, há também uma homenagem ao nome da mãe do autor, cedida a uma das personagens do livro.
Nosferatu nasce como um romance fascinante, a prova da habilidade nata de contador de histórias que permeia as veias de Joe Hill. Com uma narrativa carregada de emoção e do horror fantasmagórico de obras que nasceram efetivamente para assombrar seus leitores, esta é definitivamente uma joia entre tantas obras do gênero.
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