Marina 31/05/2020
O mais legal de "Dona Flor e os seus dois maridos" é que, mesmo já tendo ouvido falar da trama, o livro em si assume o papel de "contar os pormenores dessa famosa história". Convidado o leitor à descoberta e redescoberta desse enredo, adentramos numa leitura que nunca perde seu brilho, sua graça, sua sensualidade, sua baianidade.
Dona Flor é uma cozinheira de mão cheia, professora e dona da escola de culinária Sabor e Arte que, por sorte ou azar, casou-se duas vezes: a primeira, com o vadio Vadinho, que a deixou viúva; a segunda, com o farmacêutico Dr. Teodoro Madureira, músico amador e digníssimo senhor.
Mas esses são apenas os protagonistas de uma história repleta de personagens (reais e inventadas), que representam fielmente a Bahia da década de 60: dona Norma, dona Gisa, dona Rozilda, Mirandão... E Jorge Amado não poupa esforços para contar sobre cada uma delas, a tal ponto de conseguir se referir no livro "àquela gorda Carla" e que lembremos de quem se trata (da prostituta preferida pelos literários), como se fosse uma velha conhecida, já que tinha sido mencionada anteriormente. Genial.
Também vale destacar que cada capítulo é introduzido por uma receita, uma canção ou um conselho de Dona Flor, adquirindo a narrativa um ar de peça teatral, com o autor explicando o que vai acontecer naquele ato.
Jorge Amado é um gigante da literatura brasileira. Com este livro, deixa claro o seu dom de contador de histórias. O autor não consegue ser direto, pegando várias tangentes, descrevendo detalhes e se demorando em fofocas e explicações sobre as personagens. Essa característica pode dificultar um pouco o ritmo da leitura, mas a graça das situações, sempre curiosas e interessantes, nos faz amar e desejar esses devaneios.
SPOILER!
Chegados ao ápice do conflito, entendemos e sofremos com Flor. Teodoro é um excelente marido. Como sentir falta de Vadinho, um homem malandro, viciado em jogo e que tanto a fazia sofrer? Mas, como diz o autor: "a felicidade não tem história, com uma vida feliz não se faz romance". Flor, mesmo feliz, ainda sente falta, em seu íntimo, do homem que a iniciou nos prazeres de mulher. Assim, Vadinho "volta à vida", ajudando a amigos e velhos conhecidos, seduzindo novamente a protagonista e claro, deixando em mão dos orixás (e da vontade de Flor) a sua permanência no mundo.
Deixando à parte o machismo e outros problemas dos costumes da época (um ponto interessante de reflexão, já que o livro não é tão antigo assim), também podemos pensar nesse embate entre espírito e matéria, entre a mente recatada e o corpo que arde de desejo. Flor, mulher séria, recatada, mas mulher viva e ardente. No fim das contas, ela se descobriu inteira, sem precisar se dividir entre os dois, pois podia aproveitar do melhor de cada homem. Esse foi o segredo da sua felicidade... Isso nos anos 60!
Entre a magia dos orixás, as músicas populares, a baianidade bem temperada e cozinhada a fogo lento, se encontra a "história de Dona Flor e de seus dois maridos, descrita em seus detalhes e em seus mistérios, clara e obscura como a vida".
Acabei o livro, e já sinto saudades.