Carla.Parreira 25/10/2023
Dona Flor e seus dois maridos
O livro conta a história de Florípedes, a dona Flor. Primeiro vem o seu casamento com Vadinho e, após ficar viúva aos trinta anos, surge o casamento com Teodoro. O primeiro marido é farrista, mulherengo e viciado em jogo. Já o segundo é um pacato e respeitável farmacêutico. Eis um dos exemplos que achei mais marcante entre ambos: enquanto o primeiro lhe batia a fim de pegar as economias para gastar no jogo, o segundo lhe abre uma poupança para o dinheiro render juros. O livro foi escrito entre os anos de 1965 e 1966, tendo as características de tal época.
Eis alguns trechos que retirei como principais ao longo da história:
Sobre Vadinho e sua paixão por Flor: ?...Ele não tinha sequer endereço estável, mudando de pensão barata a cada mês por falta de pagamento. Como esbanjar dinheiro em aluguel quando sobrava tão pouco para o jogo? Flor trazia um novo sabor à sua vida, uma quietude, uma placidez, um gosto de ternuras familiares... Amava a singeleza da moça, sua mansidão, sua alegria sossegada, e sua compostura. Lutando diariamente para derrubar-lhe a resistência e romper-lhe a castidade, sentia-se, no entanto, contente e orgulhoso com ela ser assim recatada e séria. Porque só a ele competia domar esse recato, reduzir a prazer aquela pudicícia. Os amigos de Vadinho descobriam um brilho em seus olhos, acontecendo-lhe ficar parado ante a roleta, esquecido de depositar a ficha, sonhador... Apaixonado por Flor, projetando casar-se com ela, mas nem assim disposto a fugir a seus solenes compromissos, a seu quotidiano de jogo e malandragem, de bebedeiras e arruaças, de cassinos e castelos...?
Postura independente de Flor através dos seus dons culinários: ?...Afinal Vadinho não era nenhum celerado, nenhum facínora, foragido da justiça ou cangaceiro do grupo de Lampião; nem ela, Flor, tinha quinze anos, inocente de tudo, sem nada saber da vida. E as despesas da casa não era Flor quem as assegurava, pagando aluguel e comida?...? Sobre os costumes da época com relação à viuvez: ?...Nos primeiros tempos de viuvez, tempos de nojo, de luto fechado, permaneceu dona Flor em preto e em silêncio, numa espécie de devaneio, nem sonho nem pesadelo, entre o crescente murmúrio das comadres e as memórias dos sete anos de casamento... Ao cumprir seis meses de viúva, dona Flor aliviou o luto até então fechado em nojo, obrigando-a, na rua ou em casa, a negros vestidos sem decote. Única nuance nessa negritude: as meias cor de fumo...?
O casamento com Teodoro: ?...Quando tivera início o interesse do farmacêutico, ninguém sabe; não é fácil determinar hora e minuto exatos para o começo do amor, sobretudo daquele que é o definitivo amor de um homem, o amor de sua vida, dilacerante e fatal, independente do relógio e do almanaque. Em dia de confidências, tempos depois, doutor Teodoro confessou a dona Flor, com certo acanhamento risonho, admirá-la de há muito, de antes da viuvez... Teve assim o segundo casamento de dona Flor quanto faltou no primeiro; regido, a rogo dos noivos, por dona Norma, com proficiência e escrúpulo, viu-se cada coisa em seu lugar, na devida hora, tudo de boa qualidade e por preço acessível, tendo ela contado para tal sucesso com a ajuda entusiasta da vizinhança em peso... Era meu querido para cá e minha querida para lá, com afeto e urbanidade, sendo doutor Teodoro de opinião que o trato gentil e a cortesia são complementos do amor, imprescindíveis. Jamais se dirigiu à esposa sem atenção afetuosa, esperando dela a mesma afável polidez de tratamento... A rua seguia de perto os passos de dona Flor: seus vestidos, suas relações de alta, a nova ordenação de sua vida, com visitas, passeios e cinemas, e o próximo pleito eleitoral na Sociedade de Farmácia. Mas, sobretudo, empolgou-se a vizinhança com a música, tema palpitante trazido à baila quase ao mesmo tempo pelo lauto ensaio da orquestra de amadores...?
O aparecimento do espírito de Vadinho: ?...No leito de ferro, nu como dona Flor o vira na tarde daquele domingo de carnaval quando os homens do necrotério trouxeram o corpo e o entregaram, estava Vadinho deitado, a la godaça e sorrindo lhe acenou com a mão. Sorriu-lhe em resposta dona Flor, quem pode resistir à graça do perdido, àquela face de inocência e de cinismo, aos olhos de frete? Nem uma santa de igreja, quanto mais ela, dona Flor, simples criatura... Todas as tardes, dona Flor, terminada as tarefas quotidianas, e após o banho, envolta em perfume e talco, deitava-se no leito para uns minutos de repouso. Então, invariavelmente, Vadinho junto a ela se estendia e sobre as mais diversas coisas conversavam (e enquanto conversavam, lá ia ele derrubando bastiões, tomando-a contra seu peito, dobrando-lhe a vontade). Quando se dispunha a reclamar, ele a distraía falando dos lugares de onde viera, e dona Flor toda curiosa, cheia de perguntas, não tinha forças para proibições...?
Arrependimento pela macumba que ela encomenda para se livrar de Vadinho: ?...Pela primeira vez, dona Flor sentia Vadinho sem forças para agir, confuso e perdido. Onde sua flama, sua arrogância, sua picardia?... Lembrou-se dona Flor do ebó. Bem sua comadre Dionísia lhe avisara. Cabia-lhe toda a culpa, pois recorrera aos orixás e suplicara que levassem Vadinho de retorno à sua morte...?
Flor percebe que não consegue ficar sem Vadinho, chama de volta seu espírito para continuar seu lado, e a historia do livro termina numa cena dela com seus dois maridos: ?...Do braço do marido felizardo, sorri mansa dona Flor: ah!, essa mania de Vadinho ir pela rua a lhe tocar os peitos e os quadris, esvoaçando em torno dela como se fosse a brisa da manhã. Da manhã lavada de domingo, onde passeia dona Flor, feliz de sua vida, satisfeita de seus dois amores...?