Reccanello 17/08/2023Tem gosto de mel e pimenta, e de gengibre…Primeiro, uma curiosidade e um orgulho: conquanto não seja um dos poucos que foram assinados pelo autor, eu tenho um exemplar da primeira edição deste livro. Nele, que é uma das mais icônicas e fascinantes obras da literatura brasileira, o autor Jorge Amado mergulha o leitor na vida da protagonista Florípedes, uma mulher vivaz e sensual, enquanto enfrenta os desafios do amor, da paixão, das forças dos orixás e das complexidades culturais na Bahia dos anos 1940.
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Ambientando sua história no rico contexto histórico e social da Salvador da década de 1940, e sempre um atento observador de sua sociedade, Jorge Amado captura com maestria todas as transformações pelas quais o país passava na época com a constante urbanização e a crescente influência da cultura global, inserindo-as habilidosamente na narrativa, ao mesmo tempo em que mantém a atmosfera vibrante e colorida da Bahia, retratando seus detalhes mais picantes e transportando o leitor para ruas movimentadas, mercados exóticos e terreiros cujos rituais místicos permeiam a vida cotidiana. Misticismo este refletido na própria trama da obra, que gira em torno do triângulo amoroso incomum entre Dona Flor, seu falecido marido Vadinho e o atual marido Teodoro. Além do fato de um estar vivo enquanto o outro não passar de um defunto, o contraste entre os dois homens é marcante: Vadinho é um hedonista impulsivo e imerso nas alegrias terrenas (eufemismos para não dizer que ele era um malandro, boêmio, alcoólatra, viciado em jogo e mulherengo), enquanto Teodoro é estável, metódico, respeitável e dedicado à carreira de farmacêutico. Mais que adicionar pitadas de humor à complexa relação de Dona Flor com seus dois maridos, e aliadas ao genuíno amor que sentem uns pelos outros, essas discrepâncias criam uma atmosfera de sensualidade e reflexão sobre as escolhas que as pessoas fazem em suas vidas amorosas.
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De forma muito vívida, o autor descreve a vida noturna boêmia dos cassinos, dos prostíbulos e dos bares da cidade, e toda a diversidade de experiências que a Bahia tinha a oferecer na época ganha vida nas páginas do livro. Tanto ricas quanto pobres, as famílias dos muitos personagens são retratadas com uma autenticidade marcante, bem como seus segredos, conflitos e alegrias, proporcionando um vislumbre das relações sociais e emocionais da época. Os hábitos alimentares e musicais da população são igualmente evidenciados na narrativa, porquanto sejam parte integrante da cultura, das interações sociais e da própria identidade baiana. Esta também é destacada pelo papel central que as religiões de matriz africana desempenham na obra, com seu sincretismo marcante abordado com sensibilidade e respeito. Por último, mas não menos importante, o livro também destaca os valores morais da época, expondo tanto as crenças quanto os preconceitos da sociedade, em que a rígida e hipócrita moralidade padrão convive tranquilamente com uma vivacidade e sensualidade latentes, revelando as complexidades das normas sociais da época.
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Enfim, e por combinar elementos históricos, sociais e culturais com uma narrativa envolvente e personagens cativantes, "Dona Flor e seus Dois Maridos" é uma obra-prima literária que nos convida a explorar as nuances da sociedade baiana e a riqueza espiritual de suas crenças. Através deste livro, Jorge Amado permanece como um mestre em capturar a essência da Bahia e da alma brasileira.
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