Lucas 09/02/2017
A sensualidade cômica e sem sadomasoquismo
Qual a verdadeira lógica de uma união matrimonial? O "gostar" é o mesmo que "desejar"? É amor um sentimento puramente material, baseado no "ter", mesmo que ele seja travestido de atitudes minimamente sensíveis? O casamento é um fim ou um meio de as partes serem felizes?
Boa parte destes dilemas é exposta (e não necessariamente resolvida) em Dona Flor e Seus Dois Maridos, lançado em 1966 pelo baiano Jorge Amado. Trata-se de um romance que mistura de uma forma bem particular os aspectos ambíguos e por vezes injustos que regiam (e ainda regem, em muitos casos) o casamento. Retratando de uma forma perfeita a sociedade soteropolitana da metade do século XX, Amado elabora uma história recheada de momentos alegres e cômicos, usando uma ótica humorística para expor assuntos íntimos, que são naturalmente mais delineados com um viés mais conservador.
Jorge Amado é, disparadamente, o autor mais adaptado da literatura brasileira como um todo. São infinitas as adaptações cinematográficas, televisivas e teatrais de suas obras, sempre marcadas por um "tempero" de sensualidade feminina e bom humor. Dona Flor e Seus Dois Maridos é um dos maiores expoentes de sua carreira, ao demonstrar a vida amorosa de uma típica mulher do subúrbio de Salvador. Sob inicial fortíssima influência da sua mãe, Flor pode ser encarada com um espelho feminino da época: mulher honesta, sensual, que nunca tratou do trabalho como algo negativo, mas que, por ser inicialmente tímida, não se tornava atraente a homem algum, aspecto que perturbava a sua mãe (personagem mais lastimável da narrativa). Para o ângulo masculino, Jorge Amado trouxe dois personagens contraditórios ao extremo (cujos maiores detalhes não podem ser dados aqui), retratando assim o homem da época, seja ele boêmio ou trabalhador, infiel ou honesto.
Em meio a isso, o grande escopo na obra, no entanto, foge da questão do relacionamento entre mulheres e homens. Também não critica ou eleva a instituição do casamento; na verdade, em conjunto com outros aspectos cômicos e trágicos, Dona Flor e Seus Dois Maridos nada mais é do que um romance que exacerba na protagonista (e consequentemente no leitor) a milenar questão do conflito entre razão e emoção, com toda a sua complexidade. O que sustenta uma relação, em verdade, deve ser um misto dos dois. Por mais que um indivíduo seja racional, sempre devem haver momentos passionais e vice-versa; a mistura, mesmo que mínima, entre o pensar e o agir é um dos maiores insumos à vida de casado.
O autor, conforme já mencionado, é conhecido por expor a sensualidade feminina em suas obras, além de retratar com sutileza as mazelas da sociedade brasileira nas mais diversas turbulências ocorridas nos últimos 70 anos do século XX. Por estas "petulâncias", Jorge Amado foi muito perseguido pelo governo (especialmente durante a ditadura de Getúlio Vargas) e pela igreja. Apesar da comicidade, outro traço característico de sua escrita, muitas de suas obras possuíam um alto teor dramático; Capitães de Areia, seu primeiro grande livro, de 1937, trazia uma história com alta carga de tristeza, por exemplo. Esta variabilidade de estilos é uma justificativa da infinidade de adaptações que a sua obra possui e ainda gerará na cultura brasileira.
Outro exemplo da capacidade elevada de narrar do autor é visto na história de Dona Flor, onde ocorre uma perfeita descrição da sociedade baiana da metade do século XX. Relatando vários bairros e ruas reais de Salvador, como o Rio Vermelho, Largo Dois de Julho e Ladeira do Alvo, Jorge Amado desenvolve em sua narrativa as várias camadas sociais da Bahia, desde os mais abastados até indivíduos e famílias em melhores condições sociais, passando pela vida nas pequenas ruas da capital baiana (usando a popular fofoca, o folclore e a culinária da Bahia como ótimos instrumentos para situações engraçadas). Nesse contexto, há também espaço para o arranjo de casamentos, que muitas vezes eram encarados como trampolins para uma vida melhor, especialmente nas classes suburbanas. As mulheres mais novas, especialmente as pobres e virgens, eram colocadas como um "chamariz" para homens mais ricos por mães que queriam uma melhor comodidade familiar. Praticamente meio século depois, há ainda hoje muitos enlaces patrimoniais que se baseiam nessa relação material, mas de uma forma menos "espalhafatosa". E Jorge Amado não critica esse arranjo; trás a veia cômica de uma mãe em busca de bons partidos para suas filhas, abrindo espaço para situações hilariantes, mas carregadas de um prisma levemente desolador.
Assim, Dona Flor e Seus Dois Maridos é Jorge Amado em sua essência: grande valorizador da sensualidade, expondo o íntimo do relacionamento de uma forma mais cômica (usando termos chulos muitas vezes, que podem chocar o leitor mais conservador, mas devem levá-lo também a boas risadas), um grande literato (tornando tangível a quem lê a eterna e histórica cidade de Salvador da década de 60) e um excelente narrador (os diálogos não são tão frequentes e mesmo assim a narrativa fica longe de ser lenta ou cansativa). Conhecer a peculiar vida de Dona Flor é, portanto, uma ótima experiência, que engrandece e cativa sob todos os aspectos.