Thereza 17/07/2020
Diferentes vozes com uma só narradora
Aqui, nesse romance de Hatoum, teremos o recurso de múltiplos pontos de vista de um modo distinto do que — ao menos eu — estou acostumada.
Acompanharemos somente uma narradora, mas múltiplas vozes. Essa Narradora não apresenta seu nome, não há necessidade, já que o livro é um relato que ela escreve para seu irmão que mora em Barcelona. Porém, mesmo que o relato seja dela, ela decide ser bastante democrática e praticamente transcrever o que grava das pessoas à sua volta. Digo praticamente porque o tom de escrita é sempre o mesmo, ainda que se tratando de outro membro da família falando. Esse tom, a própria narradora o justifica.
"Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depoimentos gravados, os incidentes, e tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado."
E quem são essas pessoas cujas palavras são tão importantes para serem gravadas e enviadas a seu irmão? São da família que os acolheu.
Emilie é a avó adotiva da Narradora e de seu irmão. A mãe deles os entregou à matriarca e pediu que os criasse. Não saberemos a ligação dessa mãe com Emilie, porque na verdade não importa. Emilie é também uma imigrante do Líbano que vive em Manaus, assim como seu marido. Além de esposa e avó ela é mãe de 4 filhos, são eles: Hakim, Samara Délia e outros 2 inomináveis. Ela também é irmã de Emir e Emílio, um dos dois já falecido, cujo fantasma (metaforicamente) acompanha as gerações dessa família. E afora tudo que a define dentro de suas relações sanguíneas (ou quase), ela também é uma mulher católica, muito espiritualizada, que respeita as crenças da região, não descarta nenhum conhecimento sobre ervas e misticismos, uma vez ao ano distribui boas ações pra quem precisar e ganha dessas pessoas os mais exóticos presentes. Ela é o cerne que sustenta tudo que citei acima e que está à sua volta. Sem ela, muito desabaria. E é o que vai acontecer conforme os membros da família decidem deixar Manaus e afastar-se dessa mulher.
A própria Narradora deixa Manaus. E, 20 anos depois, volta. E é nessa volta que colhe esses depoimentos. Ela os colhe pois quer conhecer. A verdade é que, além de Emilie, segredos sustentam a permanência dessa família. Segredos desde coisas simples como o porquê de Emilie amar tanto um relógio, até a verdade por trás da morte do tio dos 4 (agora adultos) descendentes da matriarca.
E esses segredos e essa insaciedade da Narradora por desvendá-los nos faz pensar como que as relações consanguíneas, por mais sólidas que possam parecer, não são capazes de suportar tudo. E basta uma desavença por religião, uma morte, uma partida ou uma história mal contada para que os envolvidos passem a repensar qual o propósito de permanecerem ali.
Para encerrar, o término dessa leitura me deixou um certo sentimento de orfandade. Me apeguei à essa história, a essas figuras. Queria permanecer e saber mais. Quando estava quase tocando o elo que se formava entre mim e Emilie, o livro termina. Não basta dizer que o amei (e amei muito), parece genérico demais para um livro tão longe do genérico. Quando amo tanto um livro como amei Relato de um certo Oriente, geralmente fico querendo ler tudo que o autor já escreveu. Mas não sei se quero ler tudo que Milton Hatoum escreveu, porque foi profundo demais o espaço interno que essa narração me atingiu. Certamente, em algum momento, vou me aventurar por Dois Irmãos, porque sou brasileira e preciso conhecer algo tão feito por gente que carrega o mesmo título que eu. Mas isso, imagino, ocorrerá daqui uns anos, quando eu for capaz de me esvaziar dos sentimentos que esse livro me jogou goela abaixo.
site: https://medium.com/@thetenardotto/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum-b792da8a9e22