Lila 17/06/2015
NUM CERTO ORIENTE..
"Ter vindo a Manaus foi meu último impulso aventureiro; decidi fixar-me nesta cidade porque, ao ver de longe a cúpula do teatro, recordei-me de uma mesquita que jamais tinha visto, mas que constava nas histórias dos livros da infância e na descrição de um hadji da minha terra."
(Relato de um certo Oriente, Milton Hatoum)
Ao chegar à última página, percebi que nem tudo seria revelado. Segredos foram mantidos, mistérios permaneceram no escuro. Assim é a vida, em que muito pouco é desvendado, e menos ainda, explicado. E assim é o romance de Milton Hatoum que, misturando tâmaras a graviolas, almíscar a canela, compõe as memórias, muitas vezes sensoriais, deste mosaico de narrativas: “Relato de um certo Oriente”.
Cidade ilhada
Numa antiga Manaus, são relatadas as lembranças de uma família de imigrantes vindos do Líbano e os conflitos partilhados por eles ao longo das décadas vividas no norte do Brasil.
“Os levantinos da cidade eram numerosos e quase todos habitavam o mesmo bairro, próximo ao porto. A beira de um rio ou a orla marítima os aproxima, e em qualquer lugar do mundo as águas que eles veem ou pisam são também as águas do Mediterrâneo”.
Voltando ao quintal de sua infância, uma mulher pretende reunir relatos, regatar a identidade de seus familiares e encontrar a si mesma.
Quando começa a relatar sua história, misturando o presente ao passado, conduz o leitor por uma casa desconhecida na cidade ilhada, levando-o, lentamente, a compreender quem é o dono de cada memória que vai sendo costurada ao texto.
Emilie é a grande matriarca: mãe natural e mãe adotiva. Em torno dela orbitam as memórias de todos: sua filha adotiva, seu esposo, o amigo da família, a amiga e vizinha que a ampara na velhice, e o amado filho ausente, para quem ensinou a língua de sua pátria, a língua em que falava sua alma:
“(...) ao conversar comigo, minha mãe não traduzia, não tateava as palavras, não demorava na escolha de um verbo, não resvalava na sintaxe. E eu sentia isso: cheia de prazer, soberana, desprendia de tudo, ela podia eleger os caminhos por onde passa o afeto: o olhar, o gesto, a fala”.
Uma colcha de retalhos
Um jovem suicida, a gravidez de uma adolescente, o silêncio de uma garotinha, o comportamento selvagem de dois irmãos, e um fotógrafo alemão apaixonado por orquídeas são alguns dos retalhos costurados nessa colcha de memórias.
Um leitor desavisado pode, facilmente, se perder, entre as tramas dessa tessitura, antes de compreender que o contador da história muda a cada capítulo em que a voz é passada gentilmente a outras personagens.
O ideal é que, ao final da leitura, se revisite o primeiro capítulo, como quem ajusta o foco de uma lente. Como quem se distancia do desenho que foi composto por cada uma de suas belas partes.
Como um romance
"O desenho acabado não representa nada, mas quem o observa com atenção pode associá-lo vagamente a um rosto informe. Sim, um rosto informe ou estilhaçado, talvez uma busca impossível nesse desejo súbito de viajar para Manaus depois de uma longa ausência."
A trajetória dessa mulher é a busca pessoal de todo ser humano. Não compreendemos o que buscamos, não conseguimos vislumbrar o resultado de nossa procura. Porque buscamos a nós mesmos e nós não estamos prontos e, em vida, jamais estaremos.
Todos os pedaços de nossa existência formam uma imagem disforme. Porém um observador atento pode enxergar o vulto de quem somos e talvez a silhueta de quem buscamos ser. Cada um desses pedaços são pedaços de passado e sonhos de futuro; cheiros, sabores e texturas; dores, alegrias e angústias.
A linha que as costura é a nossa procura por sentido. Procura permeada de segredos que não podem ser revelados e mistérios que não podem ser explicados. Buscar a si mesmo é a nossa inacabada e inacabável obra.
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