Allef.Wanderson 20/04/2021
O que há de melhor em Ozob
Ozob: Protocolo Molotov parece condenado a não ser levado a sério. Uma das propriedades intelectuais que surgiram do famigerado Nerdcast pode atrair olhares tortos de quem vê a obra como uma maneira de monetizar uma ideia incialmente disponibilizada de graça, um livro direcionado especificamente para os fãs do Jovem Nerd, que comprariam qualquer coisa vendida pela empresa. Não nos esqueçamos também de que se trata de “literatura fantástica nacional”, um gênero acusado de ser apenas uma colcha de retalhos de clichês consagrados da fantasia em língua inglesa, cheio de metalinguagem e “referências” para fazer os nerdões delirarem com a própria capacidade de achar esses easter eggs.
A bem da verdade, muitos dos livros de fantasia feitos no Brasil sequer se passam no país, outros ainda têm uma mitologia demasiado inspirada na versão mítica da Europa Medieval. Final Fantasy, Tolkien e Star Wars são algumas das “escolas” óbvias de alguns desses autores, inclusive autores que eu gosto.
Além do mais, esse estereótipo da literatura nacional se estende a outras mídias produzidas no país, como é o caso do excelente game Knights of Pen and Paper e do quadrinho HQ de Briga, igualmente excelente. Ambas as obras são exemplos de todo um tipo de produção nerd brasileira que se sustenta na metalinguagem e na brincadeira com os arquétipos tradicionais, tudo feito em tom cômico. Mas fica a pergunta: será que a gente consegue fazer mais do que produções desse tipo? Fazer obras que de fato se sustentem na trama, nos personagens e no universo criado. É uma questão pra deixar em aberto…
E, de fato, algumas dessas coisas podem mesmo ser ditas sobre Ozob. Mas outras mais interessantes também.
Em linhas gerais, o livro escrito por Leonel Caldela e Deive Pazos se passa num futuro não tão distante em que o avanço tecnológico continuou às custas da qualidade de vida da população e a atender interesses capitalistas. “As corporações”, que praticamente constituem uma entidade no livro — quase como o Agente Smith de Matrix — , mais distante e abstrata que “o governo”, mas cuja margem de atuação na sociedade é extremamente palpável, foram responsáveis por colonizar os planetas mais próximos e deles é dona. Na Terra, governos resistem o suficiente para manter uma ideia de nação e conservar algum tipo de ordem.
Até aí, nada muito original, certo? Pra quem está acostumado com o gênero cyberpunk, essa ambientação é lugar comum. Entretanto, os autores adicionaram uma dose maior de “punk” na obra. Cada capítulo do livro tem o título inspirado numa música punk, desde referências mais óbvias como a clássica “We’re a Happy Family” até outras mais obscuras como “I Need Some Brain Damage” e outros sons que descobri lendo o livro. Essa “trilha” harmoniza perfeitamente com o anarquismo panfletário que é a tônica da obra.
Sobre o protagonista, Ozob é um construto biológico (replicante) criado por um cientista atormentado pela vida como propriedade de uma das maiores corporações do planeta. Sim, seres humanos não são mais protegidos por um conceito universal de valor a vida, e podem ser duplamente produtos e consumidores nessa realidade distópica. Ozob é encomendado para trabalhar nas minas interplanetárias, mas, assim como outros replicantes produzidos pelo cientista louco Hans Gropp, é recusado por, digamos, não atender as expectativas do comprador. A partir daí a trama se desenrola e acompanhamos as aventuras desse produto recusado no universo hostil e decadente do capitalismo radical. Mas, muito mais do que encantar pela trama, Ozob têm passagens incríveis esclarecendo como funciona esse universo, constituindo o ponto mais alto da obra.
Como não poderia ser diferente, nesse universo as corporações controlam as redes sociais sem qualquer regulação oficial, assim como os anúncios. Logo, ao se deparar com um anúncio enquanto acessa a internet através dos implantes neurais que substituem os smartphones nesse futuro, o spam não é apenas visual e sonoro — é cerebral. Uma propaganda de refrigerante vista pelos implantes neurais incute fisiologicamente no usuário o desejo de consumir tal produto. E esse é só um exemplo da amplitude do poder corporativo. O mesmo possui departamentos que atuam como “ministérios” e regulam diferentes setores da sociedade. O departamento responsável pela cultura, por exemplo, se encarrega de reprimir qualquer expressão cultural ou artística não produzida pelas corporações. Dessa forma, a indústria cultural é usada para manter o status quo e mensagens que estimulam a revolta, o não-consumo, ou qualquer sentimento distópico, é violentamente censurada. Em contrapartida, a produção de um hit musical pode ter a intenção de estimular a imigração interplanetária para preencher quadros do serviço braçal nas colônias, ou até impulsionar a indústria de cosméticos, estabelecendo um padrão de beleza inalcançável e provocando bulimia e anorexia na nova geração de adolescentes para que estes cresçam mais propensos a alimentar a indústria de procedimentos estéticos.
Familiar? Bom, é isso que a ficção tem de mais estimulante, exagerar aspectos da nossa realidade, há quem diga. E o livro faz isso brilhantemente. Claro que esse é só um aspecto da obra, o pano de fundo para a origem e jornada do famoso replicante palhaço que é repleta de ação desenfreada, violência e degradação. Pois, uma vez que os replicantes em Ozob são um conceito emprestado de Blade Runner — outra referência clássica de obra futurista — , têm na sua assinatura biológica uma “data de validade” de 4 anos, Ozob tenta aproveitar ao máximo os anos que lhe restam. Infelizmente, essa é a parte que menos impressiona na obra. As aventuras do replicante não são tão interessantes quanto os conceitos criados para dar vida ao cenário e, entre clichês de nêmesis e laços de amizade, o livro é um bom “filme de ação”, eletrizante, mas não necessariamente marcante. E, para os fãs do universo criado nos podcasts do Jovem Nerd, o livro está cheio de easter eggs e fanservice. Obviamente os autores não tentaram criar a obra definitiva de cyberpunk pois este lugar já está ocupado por Philip K. Dick, Katsuhiro Otomo, Mamoru Oshii e tantos outros. Mas esse desequilíbrio entre o que há de melhor e de “menos bom” em Ozob deixa um gosto na boca. Um gosto de quero mais desse universo.
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