marisof 25/06/2023
Desafiador
"A cidade sitiada" narra a história de Lucrécia Neves, uma moradora de uma pequena cidade interiorana - São Geraldo, o nome da cidade - que sonha em desbravar o mundo e mudar-se para uma metrópole; ela o faz, arrepende-se por não se adequar à meticulosa vida estrangeira e, quando volta ao seu local de origem, percebe que também havia se tornado uma estrangeira lá, tamanhas as mudanças sofridas por ambas, São Geraldo e Lucrécia.
Apesar da premissa simples, nada de simples possui a construção literária desse livro, o melhor adjetivo dado a ele é "desafiador" por um motivo. Clarice mesmo o considerava difícil: em 1971 recomendou que um entrevistador lesse caso conseguisse, tamanha a complexidade da escrita.
O livro gira em torno do sentimento da personagem principal de ser uma estrangeira aonde está; primeiro, em São Geraldo (a parte mais evidente), esta cidade rural na qual eram observáveis animais de fazenda caminhando pelas ruas, em uma falta de classe jamais atribuída às metrópoles - Lucrécia é, porém, exatamente um dos elementos cruciais que constroem um subúrbio interiorano como este; todo bom interior possui uma menina estúpida, rude e que sonha com uma nova vida em uma insolência por não se sentir integrada aquele lugar e nunca podê-lo - Lucrécia deseja sair de lá pois não consegue, apesar das tentativas, sentir-se parte do todo, a frase "De novo ela imitada mal S. Geraldo" revela as incontáveis tentativas da garota de ser também um mecanismo da cidade. "[...] a cidade era uma fortaleza inconquistável! E ela procurando ao menos imitar o que via: as coisas estavam como ali! e al! Mas era preciso repeti-las. A moça tentava repetir com os olhos o que via, tal seria ainda o único modo de se apoderar".
Em um segundo momento, quando finalmente Lucrécia muda-se para a cidade grande após casar-se, em meio àquela capital e seus rituais baseados em conveniências os quais fazem com que a sociedade progrida falsamente casta e baseada em engrenagens totalmente e visivelmente manipuladas, a moça percebe que "domou" sua própria e verdadeira natureza para que se encaixasse nessa vida, e isso, tendo em vista sua (estúpida) obstinação de quando era selvagem, a incomoda e faz com que volte ao local de nascença. A cidadezinha, porém, avançou economicamente e Lucrécia não mais a reconhece.
No terceiro momento, é quando a personagem precisa, digamos, voltar ao seu estado de natureza, o qual é sincronizado com o da cidade: um espírito rígido, mecânico e alienado no sentido da falta de reflexões mais profundas que "bibelôs, e de certa forma cético, porém, sobretudo, feliz; São Geraldo era uma cidade entorpecida.
Um paralelo muitíssimo interessante feito por Clarice nessa obra é entre Lucrécia Neves e os cavalos de São Geraldo. "Estes [a moça e os equinos], agora despercebidos pelo hábito, eram também a força sorrateira sobre São Geraldo.".
Chega a ser meio trágica a vontade da moça de se sentir parte de algo, o ódio que ela inicialmente sente pela cidade demonstra uma defesa que dá pena, pois a todo momento sabe-se que o ódio é apenas expressado diante da inalcançabilidade da natureza da cidade para Lucrécia. Em certo momento da história, a menina envolve-se com um militar que não mora em S. Geraldo, e seus sentimentos em relação a ele são descritos como: "Ela o desejara porque ele ra um forasteiro, ela o odiava porque ele era um forasteiro", isto demonstra seu descontentamento e seu espelhamento em relação à sua cidade. Digo descontentamento por não achar palavra melhor, mas o que quero dizer é que ela odiava S. Geraldo porque a colocou sob um pedestal ao não conseguir imita-la; S. Geraldo sempre será inalcançável para ela, por isso a idolatria.
"Mas não havia como sitiá-la. Lucrécia Neves Neves estava dentro da cidade". Apesar da mudança em busca de uma nova vida, era impossível que Lucrécia fugisse de sua natureza "cavalesca", pois nascera para ser apenas mais um bibelô da cidade, mais um simples objeto evidentemente não pensante que, em conjunto com outros de mesma natureza imóvel diante dos suspiros da vida, fazem com que um subúrbio seja um subúrbio.
Por fim, a estupidez lucreciana é esxposta em um trecho do qual gosto muito: "À Lucrécia, os restos de um fausto mal soterrado fascinaram tanto quanto o contínuo ruído daquela cidade". Ela não se empolgara nem um pouco com os ruídos, e ela tampouco sabia o que era um Fausto ou se importaria caso o visse em uma cova mal feita.
"Como um morcego a cidade era cega de dia"