Marcos Pinto 30/01/2017Lucrécia Neves é uma personagem complexa, dessas que a gente encontra principalmente na obra da Clarice Lispector. Uma quase alma gêmea de Macabéa, a protagonista tem um vínculo todo especial com o subúrbio de São Geraldo e é praticamente desprovida de pensamento próprio: ela é o que ela vê; ela é o seu subúrbio tão amado.
Lucrécia se mistura completamente com a paisagem, com aquilo que vê. Contudo, apenas isso não basta, ela quer algo mais. Para isso, namora, buscando um casamento. No começo, tinha dois namorados: Felipe, um militar, suprindo a fixação da protagonista por homens de farda; Perseu, homem belo e bem-educado, mas um fraco, que não marca posição. Entre encontros com um e outro, Lucrécia não recebia seu pedido de casamento e também continuava sitiada. Ela não sabia do que vinha a asfixia, mas ela existia.
Entre um e outro, a moça acaba se casando com um terceiro, que a leva para longe de São Geraldo; a sua visão muda, o que ela é muda também um pouco. As sensações são diferentes, mas ainda resta um pouco de nostalgia, de desejo de voltar para casa, para o seu subúrbio. Lucrécia quer muitas coisas, o amor, o fim da sua carceragem, o pensamento... Mas ela não vê nenhum deles, então não os alcança. Tudo na vida da protagonista parecia altamente complexo. Seria ela capaz de transpor tudo?
“Até centros espíritas começavam a forma-se acanhadamente no subúrbio católico e Lucrécia mesma inventou que às vezes ouvia uma voz. Mas na verdade ser-lhe-ia mais fácil ver o sobrenatural: tocar na realidade é que estremeceria nos dedos” (p. 23).
A Cidade Sitiada é um romance diferente do que estamos acostumados, principalmente por Lucrécia ser uma protagonista incomum. Com pouca vontade própria e quase nenhum pensamento, ela vive por imagens, pelo que sente. Isso dá à obra uma característica totalmente diferente, algo entre uma visão profunda e uma sinestesia exacerbada. O texto torna-se mais do que um livro, mas uma experiência literária complexa, densa, mas envolvente.
A linguagem do texto é mais voltada para a conotação, para o metafórico, para os sentidos. Por isso, a leitura é mais lenta e cada detalhe é essencial para que se entenda a obra. As descrições são grandes, fazendo com que o leitor veja e sinta aquilo que Lucrécia também vê. Há um claro objetivo de nos envolver, de nos sitiar, tornando-nos, assim, companheiros da protagonista na jornada de descobrindo e redescobrimento.
Apesar do livro ser denso, a simplicidade é uma marca evidente da obra. Tudo na vida de Lucrécia é simples, até porque ela vive pelo que ela vê. Então não espere grandes pensamentos e reviravoltas, o livro segue o fluxo da visão, da vida. Há uma sequencialidade nas ações e sentimentos simples, mas que envolvem completamente.
“A moça não tinha imaginação mas uma atenta realidade das coisas que a tornava quase sonâmbula; ela precisava de coisas para que estas existissem (p. 43).
Por ser uma obra mais densa, A Cidade Sitiada não é para todos e nem para todos os momentos; é necessária vontade de lê-la, de se entregar ao fluxo narrativo e se deixar levar pelas experiências literárias. Lida no momento errado, provavelmente ficará aquém das expectativas. Caso seja desbravada no momento correto, maravilhará o leitor. Para tal, não pode ser lida com pressa e nem desleixo, mas com atenção redobrada, comendo as linhas e as entrelinhas.
Quanto à parte física, há também só elogios para o trabalho da Rocco. Temos uma capa belíssima e que retrata muito bem o que podemos esperar do texto. Ademais, a editora providenciou um trabalho totalmente especial com o texto, gerando uma leitura profunda e agradável.
Em suma, A Cidade Sitiada é uma grande obra, mas que precisa ser desbravada no momento correto, sem pressa, sem afobação. Cada palavra precisa degustada. Para quem gosta de livros mais profundos, sem dúvidas esse é uma ótima opção.
site:
http://www.desbravadordemundos.com.br/2017/01/resenha-cidade-sitiada.html