Craotchky 18/08/2022Os mistérios da esfinge brasileiraEis uma obra um tanto quanto singular em relação a outras que li de Clarice. Aqui a narrativa não explora a internalidade de sua protagonista, coisa que acontece em outros títulos, nos quais essa característica acaba sendo exatamente o elemento central. Lucrécia não é uma personagem questionadora, tampouco é perpassada por indagações existenciais. Ao contrário, parece vazia de matéria-prima. Ela apenas vê e se compõe com o que viu, mas sem processar o conteúdo visto. Ela meio que é apenas o lado de fora.
"[...] tudo o que Lucrécia Neves podia conhecer de si mesma estava fora dela: ela via."
"Só que se via como um bicho veria uma casa: nenhum pensamentos ultrapassando a casa."
Lucrécia é superficial; se constitui tão somente com conteúdos externos, não germina nada dentro de si; quer florescer a partir do lado de lá. Seu ímpeto é somente para construções palpáveis. Não quer e sequer cogita edificar-se por dentro. Ela (sobre) vive do avesso; ela sitia-se; ela sim parece ser a verdadeira cidade sitiada da história.
Não há aqui o tradicional e poético fluxo de consciência da autora, embora a hermetidade (neologismo meu?) esteja presente de outras formas. A leitura é desafiadora na medida que abstrai sobre ambientes externos e objetos, ao invés de sensações e sentimentos. Um livro difícil, que exige atenção e pode causar fadiga. Não se pode lê-lo com simples intuição. Assim como O lustre, estou convicto que A cidade sitiada não é uma boa porta de entrada para quem deseja conhecer a autora, uma vez que é possível se perder por aqui. Ainda que
"[...] perder-se também é caminho."
Quanto à relação Lucrécia-Cidade, parece indiscutível que ela se fundamenta na própria Clarice que, enquanto gestava a obra, estava "sitiada" em Berna, na Suíça, acompanhando o marido, em uma estada que absolutamente não lhe foi agradável.
" 'Esta Suíça', escreveu à irmã, 'é um cemitério de sensações.' " - do posfácio.
Lucrécia se confunde com a cidade em uma relação de espelhamento, em um paralelismo evidente. A cidade de S. Geraldo é o duplo de Lucrécia, ou vice-versa. Estou ciente que isso soa esquisito. É que qualquer coisa de Clarice tem seu Mistério próprio. Quem frequenta Clarice sabe. Certamente não serei eu que vou decifrá-la. Que me devore, portanto.
O fato de que foi um dos livros da Clarice mais mal recebidos pela crítica, bem como por grande parte do público (
"As vendas indicam que é o menos popular dos romances de Clarice." - do posfácio.) é compreensível. Nem Lucrécia, nem a cidade de S. Geraldo e em consequência, nem o livro me cativou. A história não conseguiu me machucar, infelizmente. Em outras palavras: não me conectei.
Ah!, os cavalos e as características equinas também me intrigam.