Adônis 23/06/2016Sobre as profundezas do oceano e da nossa própria consciênciaConseguir publicar seu primeiro romance pela Rocco não é para qualquer um. Com um trabalho gráfico desses (como diz o selo, Fantástico!) e um título tão metafísico – e por isso instigante, pode-se dizer que a autora tinha uma grande responsabilidade nas mãos de cumprir as expectativas de leitores que “compraram o livro pela capa”. Quanto aos que a acompanham há algum tempo – Aline Valek mantém um site, uma newsletter, é colunista, escritora de contos, dentre outros trabalhos –, a dificuldade era provar para seu público fiel, que já sabia de seu talento para a literatura, que ela seria capaz de escrever tão bem sobre o mar quanto ela escreve sobre, por exemplo, feminismo. Na minha opinião, ambos os objetivos foram completamente alcançados, e vou explicar por quê.
‘As Águas-Vivas…’ é, sim, um livro tão poético quanto seu título. Não se engane, porém: a história principal não trata de águas-vivas propriamente; ao menos, não apenas. O enredo, na verdade, acompanha duas linhas paralelas. A primeira nos conta sobre Auris, uma pequena estação subaquática que desceu às profundezas para colocar à prova trajes de mergulho modernos capazes de aguentar a pressão absurda do fundo dos oceanos; dentro dela, convivem cinco pesquisadores. Pode-se dizer que, de certo modo, os cinco têm protagonismo, apesar de o foco geralmente se voltar à mergulhadora Corina. Cada um deles tem seus problemas, sua razão (e segredos) para estar ali e uma personalidade forte, o que faz de sua coexistência naquele espaço reduzido uma experiência não tão agradável e torna as coisas mais interessantes.
A segunda linha, minha preferida (apesar de achar necessária a intercalação), nos traz a visão do fundo do mar, muitas vezes em épocas remotas. Não vou entrar em detalhes para não estragar as surpresas, mas é lindíssimo o modo como a autora descreve os seres que lá habitam – e como eles veem o mundo –, o ambiente, as luzes, os sons (até mesmo os sons você parece capaz de escutar!)... É, de verdade, poesia em forma de prosa, tamanho o lirismo das passagens. Exemplos não faltam.
“Ao contrário do cachalote, que tinha seus olhos pequenos imersos na água, olhando para os pequenos peixes que passavam por ele, as pessoas preferiam olhar para o céu. Diziam que era a experiência de contemplar um passado distante, porque as luzes que chegavam a planeta vinham com um atraso de milhões de anos, revelando um retrato de corpos celestes e lugares que podiam nem mais existir. As ondas também eram um retrato antigo, se criaturas muito primitivas ouviram aquele mesmo som, tão carregadas de informação, de histórias e de vida. As ondas ali tão próximas, e as pessoas preferiam primeiro explorar os céus e suas luzes distantes.”
Nem um pouco óbvio, o livro te dá poucas pistas do que vai acontecer – o final é um verdadeiro espetáculo –, até porque é um típico caso em que o percurso é tão interessante quanto o destino. Ou seja, ainda que você soubesse como termina o livro, eu ainda assim o recomendaria, por todos momentos em que você se sente, de fato, na profunda escuridão das águas. Para quem leu os relatos da Aline sobre a concepção do primeiro esboço da história durante o NaNoWriMo, é difícil crer que o rascunho inicial foi escrito em menos de um mês, já que claramente há muita (MUITA) pesquisa envolvida e o enredo em si é muito bem acabado – resultado, com certeza, de revisões e mais revisões, que lapidaram a obra até seu estágio final.
Longe desta resenha ser um enaltecimento irrestrito à autora, é salutar encontrar esse tipo de pérola (com o perdão do trocadilho) entre autoras/es brasileiros, tantas vezes subvalorizados – e já aviso que qualquer clichê da literatura nacional foi deixado de lado. A leitura flui bem, portanto é rápida, mas acredito que várias releituras sejam necessárias para absorver todas as matizes dessa sensível ficção científica subaquática. Minha ressalva, aliás, é quanto essa classificação, pois, apesar de conter elementos de ficção científica, a ciência em si desempenha um papel secundário, a meu ver, frente à verdadeira essência do livro, a qual é melhor deixar que cada um descubra por si.
“As ondas, no entanto, continuariam lá. Enquanto os continentes mudavam de formato, enquanto seus habitantes desapareciam e se transformavam, as ondas permaneceram lá, fazendo o mesmo barulho. O cachalote agora ouvia o mesmo som que também foi ouvido cinquenta milhões de anos antes e que qualquer criança humana, em qualquer época que existisse, ouviria ao se sentar nas areias de qualquer praia. Pelo menos isso, o cachalote sabia, eles tinham em comum.”
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