Amanda 15/07/2018Brincando de robôO poder das novas tecnologias sempre seduziu a humanidade a usar e abusar de qualquer descoberta e sempre tirar proveito daquilo que tem em mãos. Todo leitor assíduo de ficção científica sabe que entre espaçonaves, robôs, alienígenas e todo tipo de elemento high tech, o questionamento mais profundo do gênero sempre foi, sempre será sobre a natureza humana. Gigantes Adormecidos segue o raciocínio do bom e velho sci-fi, mas com uma narrativa bem diferente.
Tudo começa quando Rose Franklin cai em uma cratera, quando criança, e descobre uma mão metálica gigantesca, rapidamente confiscada pelas autoridades. Seria uma tecnologia alienígena? Teria pertencido a uma civilização antiga? As possibilidades são o ponto de partida da narrativa.
A sinopse nos envolve em uma trama de mistérios científicos e conspirações e nos dá uma ideia de linearidade, de ação robótica e tensão, mas não é bem assim e esse é o primeiro ponto da leitura de Gigantes Adormecidos necessário a ser destacado. Muito do que recebemos de um livro diz respeito à expectativa criada em cima de uma proposta de história, e aí vem o susto: a narrativa não é a prosa fluída e contínua a qual estamos habituados, mas sim uma reunião de entrevistas e fragmentos de diários sobre as descobertas feitas ao longo da trama.
Esse formato epistolar não agrada a todos e nem sempre é bem construído porque tem limitações óbvias, como profundidade de personagens, falta de detalhes etc. No entanto, a escrita do Sylvain Neuvel me impressionou de diversas formas, apesar do formato narrativo, e inclusive pelo mesmo motivo. Os arquivos variam entre os principais personagens, em grande parte sendo entrevistados, e nos ajudam a montar a história, encaixando peça por peça. E esse é o início da mostra de talento do autor, porque assistimos a busca e a construção dos artefatos recolhidos enquanto nós mesmos estamos ajustando e construindo as informações recebidas.
“– A guerra mostra o pior e, algumas vezes, o melhor de cada pessoa”.
Ainda sobre a escrita e composição do livro, Sylvain é simples e objetivo, sem explicações mirabolantes, sem termos complicados, tudo muito fácil de visualizar e entender, tornando um tema cheio de desdobramentos complexos, como a tecnologia, muito mais próxima da nossa realidade. Talvez alguns possam sentir falta de mais informações, mais descrições, mas, sinceramente, o modelo enxuto e correto do autor foi proposital e muito bem articulado.
Temos poucos personagens sendo trabalhados, mas cada um deles é bem feito. Ainda tendo poucas informações sobre eles, é muito fácil visualizar a tenente Kara e a a Dra. Franklin, por exemplo. Com atenção aos detalhes fornecidos conseguimos criar um perfil para cada um dos personagens sem muita dificuldade. Poderiam ter sido melhor trabalhados em uma trama mais extensa, sim, mas não me incomodei com isso e não senti dificuldade em gostar (ou detestar) da maior parte. O mais curioso deles, entretanto, é o único personagem do qual não nos é dito quase nada, mas isso eu deixo para vocês descobrirem sozinhos.
A narrativa sofre com a estranheza causada pelo seu modelo e pela falta de empatia imediata com os personagens, mas assim que nos habituamos vemos a história ser contada de forma bastante ágil e com bastante tensão entre cada arquivo. O enredo em si, inclusive, sugere algumas reviravoltas muito boas, embora eu tenha sido realmente surpreendida em poucos momentos. Mas tudo é muito coerente e claramente prepara um grande terreno a ser explorado pelos dois volumes seguintes.
A temática essencialmente humana é presente ao longo da narrativa, sempre relacionando as maravilhas da ciência com a fome de poder e a corrupção do homem, enfatizando a questão bélica e armamentista, as políticas de guerra norte-americanas e as disputas internacionais. A crítica é muito bem explorada e ultrapassa a ficção, fazendo-se atual e muito real através da metáfora tecnológica.
Sylvain Neuvel mistura mitos antigos e modernos, tecnologia, robôs e a indiscutível natureza humana em um livro inteligente, objetivo, cheio de simbolismos e meias palavras forçando o leitor a pensar e a montar seu próprio quebra-cabeça. Sem perder tempo com descrições e detalhes que se provaram dispensáveis para uma boa história, Gigantes Adormecidos é uma aposta certa para uma ficção científica mais sóbria, e promete ser apenas o começo de uma trilogia que ainda tem muito a mostrar.
“– Sempre há uma escolha. Sempre houve uma escolha. Você deveria estar feliz por ter a possibilidade fazer essa escolha quando o que está em jogo é muito claro. Raramente é assim”.
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