Andre Felipe 31/07/2020A linha que separa a transgressão da perda de humanidade é perigosamente tênueVocê percebe o quão sujo é quando se vê "torcendo" por personagens tão corrompidos como os apresentados pelo autor brazuca Cesar Bravo. Nesta obra recheada de elementos infernais, a linha que separa a transgressão da perda de humanidade é perigosamente tênue.
A história segue o legado do menino pintor, o cigano Wladimir Lester, que através de suas obras e artefatos sombrios, perpetua-se ao passar dos anos como lenda e sinal pernicioso de degeneração. O impacto do seu legado afetará diabolicamente a vida dos habitantes de Três Rios.
A trama episódica divide-se em quatro contos e segue um enredo (quase) linear separado por algum espaço de tempo entre as histórias. Cada uma apresenta, em minha opinião, pontos fortes e fracos, sempre com um evento determinante para próxima.
No primeiro conto, "O Abandono", conhecemos Wladimir Lester e sua tinta misteriosa sendo abandonado aos cuidados do padre Giordano. A atmosfera do conto persuade pela representação do terror/horror, mas carece da perspectiva de um protagonista empático.
"Gênese", narra a obsessão de Nôa em sua difícil jornada em busca da tal tinta de Lester. É bom justamente no que o primeiro não é, ou seja, possui um protagonista mais empático. No entanto, em alguns capítulos a narrativa torna-se repetitiva.
"O Pagamento", narra a mudança de vida de Marcos Cantão após seu pedido para a "Ciganinha" uma escultura ultra capciosa. O terceiro conto é o melhor do livro: bem escrito, divertido, cínico, visceral e viciante, seu ponto fraco é possuir muitos termos e representações questionáveis (o que pra alguns pode passar despercebido).
Por fim, "O Inferno", apresenta "a casa" do diabo e retoma a busca por Lester e sua tinta tendo como protagonista a Lucrécia. Há aqui uma ótima descrição do inferno, tanto física quanto estruturalmente, mas reserva pouco tempo pra fazer sua protagonista agir, tornando a personagem pouco ativa, em boa parte do conto.
O personagem central do livro é Lester, mas a maior parte dos outros acabam se tornando peças importantes ao seu legado no momento em que se corrompem.
Na minha leitura, este é o tema da obra: a degeneração humana.
Vale de tudo pra conseguir o bem desejado, até mesmo se entregar ao diabo. Todos os meandros desembocam no aviltamento dos mais fracos de espírito.
Este material dantesco me lembra muito as histórias do Clive Barker no que se refere a estilo. A forma visceral como descreve seu universo é um deleite para os que são ávidos por este tipo de narrativa. O forte aqui não é assustar, deixar com medo, mas sim chocar e deixar o leitor desconfortável com seu ótimo trabalho de descrição e ambientação.
Diante disso, é importante frisar: a obra não é indicada aos mais sensíveis. Seja pelas descrições viscerais e explícitas, seja pela completa liberdade em utilizar representações questionáveis ou termos hoje taxados de politicamente incorretos. Tudo no universo de "Ultra carnem" é passível de um questionamento moral.
E talvez esta seja a intenção.
O livro trabalha como um "termômetro" pra sua moralidade. Você consegue sentir o quão distante da humanidade esses personagens estão ficando quando tem dificuldade em se conectar com eles. Mas também questiona sua própria moralidade quando, por outro lado, se vê conectado.
Apesar de tais abordagens parecerem inconsequentes para o mundo atual, se contextualizada, casa perfeitamente bem com os tipos de personagens degenerados que o livro trabalha. E isso inclui o narrador que, deve-se lembrar, não necessariamente representa a visão do autor.
Como a célebre frase diz: "Dai a César o que é de César..." E dai ao narrador o que é do narrador!
Posso afirmar, desse modo, que estas questões polêmicas não me tiraram a imersão na história, mas também não passaram despercebidas ao meu olhar crítico e por isso compreendo qualquer questionamento a este ponto. Todos têm o direito (e o dever) de questionar, se assim o quiserem.
É um tema capcioso, beligerante e subjetivo que deve ser questionado ou criticado tanto quanto o leitor achar pertinente.
Dito isso, concluo que apesar de alguns problemas, o saldo foi positivo pra mim.
Fico à espera de minha próxima leitura duma obra de Cesar, o Bravo.