Su 28/01/2016
Clarice na cabeceira é uma coletânea de vinte e dois contos escolhidos e comentados por leitores/escritores, atores, dramaturgos, cantores, jornalistas, entre outros.
Esse livro contem dois contos, que eu ainda não havia tido a oportunidade de ler. Falarei um pouco sobre eles.
“O relatório da coisa” é um conto sobre o tempo e também sobre um relógio Sveglia que conseguiu tirar o sono da autora.
“Você é todo magro. E nada lhe acontece. Mas é você que faz acontecerem as coisas. Me aconteça, Sveglia, me aconteça. Estou precisando de um determinado acontecimento sobre o qual não posso falar. E dá-me de volta o desejo, que é a mola da vida animal. Eu não te quero para mim. Não gosto de ser vigiada. E você é o olho único aberto sempre como olho solto no espaço. Você não me quer mal, mas também não me quer bem. Será que também eu estou ficando assim, sem sentimento de amor? Sou uma coisa? Sei que estou com pouca capacidade de amar. Minha capacidade de amar foi pisada demais, meu Deus. Só me resta um tio de desejo. Eu preciso que este se fortifique. Porque não é como você pensa, que só a morte importa. Viver, coisa que você não conhece porque é apodrecível — viver apodrecendo importa muito. Um viver seco: um viver o essencial.”
O conto “É pra lá que eu vou” nos fala um pouco sobre a extremidade do pensamento.
“Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei onde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim.
É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? Ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois — depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.
É para o meu pobre nome que vou.”
Das introduções escritas para os contos da Clarice, a que mais me tocou foi a de Carlos Maudez de Souza.
“Clarice era ainda muito pouco conhecida em Portugal. Atraído pelo nome da escritora e pelo título do livro, requisitei A maçã no escuro. Que obra extraordinária! Tão diferente e difícil e desafiadora. Veio-me, então, de imediato, o desejo de ler tudo o que a autora escrevera.
Não consigo precisar por que ordem fui devorando os livros de Clarice, mas sei que entre os primeiros que li, numa iniciática fase de deslumbramento, se encontrava justamente Laços de família, um dos mais belos volumes de contos da língua portuguesa.
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Os seres são confrontados consigo mesmos no meio de circunstâncias tão insignificantes, que as consequências, por contraste, revelam um lugar espantoso: a boca de um cego ("Amor"), boca escura a abrir e a fechar, avoluma-se e devem imagem obsessiva e perturbante; e esse cão desconhecido de "O crime do professor de matemática" torna-se, no enterro, o símbolo da própria irresolução agigantada — "algo realmente impune e para sempre". Mansa e obscuramente ronda a ameaça: a todo o momento pode chegar a "crise". Contudo, o perigo de dissolução a que se veem expostas as personagens claricianas é, paradoxalmente, a mais funda energia desses seres. E não há apaziguamento possível porque não mais se poderá segurar a vida, mesmo no interior das células protetoras do núcleo familiar. A este respeito é bem expressivo o desfecho dado ao professor de matemática: "E como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas em direção ao seio de sua família.”
Esse livro nos mostra que Clarice Lispector mesmo depois de vários anos continua sendo a autora dos livros de cabeceira de várias pessoas. Afinal, como disse Guimarães Rosa “Clarice, eu não leio você para a literatura, mas para a vida.”.
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