WillZoka 10/06/2021
Para cada corpo que abriga essas Águas Sombrias
Jamais conseguiremos fugir
Onde as superfícies mais calma abrigam os maiores temores
E as menores esperanças
As vezes fugir, é a escolha mais inteligente.
Existem lugares que permanecem em nossa memória, marcados em nós por muito tempo, antigas casas onde crescemos e passamos boa parte da vida com nossa família, o chão que abriga os dias em que aprendemos a andar, a porta que tem nossas marcas do crescimento, o quintal que possui um pouco de nosso sangue quando nos machucamos, o quarto que lembra do jogo escondido e do primeiro beijo em um amigo ou amiga, as paredes que possuem os livros e as músicas ouvidas até tarde da noite. Praças marcadas pelas rodas da primeira bicicleta enquanto aprendemos a andar na companhia de nossa avó e caímos rindo pela vergonha e afastando a dor, bosques, estações, pontes, praias, ruas, becos, infinidades de lugares que nos transformam fazendo parte da nossa constante, eterna e assustadora mudança.
Na história de “Em águas sombrias” acompanhamos um rio que cruza a cidade de Beckford, tal rio já conhecido pela sua história antiga e seu poço dos afogamentos, que pelo que o nome sugere existe uma enorme quantidade de pessoas que perderam, ou tiraram a própria vida, em sua esmagadora maioria mulheres, desde a época em que as pessoas achavam justo condena-las por bruxaria, até os momentos atuais onde ocorre uma das histórias mais brilhantes, melancólicas e mais bem escritas.
Paula Hawkins já havia me surpreendido com seu romance de estreia “A Garota no Trem”, uma história que consegue trazer personagens assustadoramente vivos e um mistério desesperador. Em seu segundo livro as coisas tomam um rumo tão profundo e tão sombrio ao assumir uma pitada de momentos sobrenaturais. Começando pela apresentação da história onde narra Libby, uma garota sendo afogada de uma forma sádica pela população local acusada de bruxaria, em uma época onde as mulheres haviam conquistado alguma liberdade e conhecimento sobre ciência, biologia e herbalismo, e tal conhecimento foi visto como uma ameaça. Neste ponto já percebemos que as terras onde se passará a história já possui um teor macabro e uma tendência a crueldade.
“Nos poucos dias que antecederam sua morte, Nel ligou para a irmã, mas Jules, como sempre, não atendeu seu telefonema. Agora Nel está morta. Dizem que ela se suicidou. E Jules foi obrigada a voltar ao único lugar do qual achou que havia escapado para sempre.
Pouco tempo antes uma adolescente foi encontrada no rio da mesma forma que Nel. Essas mortes causam uma perturbação na cidade e trazendo à tona segredos há muito submersos”
A narrativa varia de duas maneiras, a primeira é que temos dez personagens narrando seu ponto de vista e suas relações com o lago, Nel, e os incidentes passados e atuais e cada narrativa irá variar entre primeira e terceira pessoa, o que a primeira vista, pode parecer confuso e difícil de se entender quem é quem até se acostumar. Confesso que no meu primeiro contato com o livro não entendi a abordagem e o achei um pouco entediante. Porém, quando estava realmente preparado para ler e disposto a entender sua singularidade – não só necessária para o desenrolar da história e seu mistério, deixando tudo mais angustiante e eletrizante, mas também única, mostrando o talento da autora – cai de cabeça e me dispus a entender o desenrolar da trama em apenas dois dias.
O brilho da obra está em como a história é contada, diferentes pontos de vista oferecem diferentes interpretações e visões de todos os acontecimentos da história, estar em contato com tantos personagens (inclusive os que não merecem a atenção de um capitulo para si) é como mergulhar no próprio rio, nos deparamos com diversos mal entendidos, mentiras, reviravoltas, traumas, e o que mais me assusta, o passado e o arrependimento dos personagens e em como isso os afeta no presente.
Teremos também em alguns momentos os rascunhos do livro que Nel estava escrevendo intitulado “O Poço dos Afogamentos.” Onde ela buscava contar a histórias de todas as mulheres que tiveram seu encontro com a morte naquele rio.
Quando você entende que uma pequena atitude sua causou um enorme estrago e influenciou o rumo de diversas vidas, como continuar sem se culpar? Você indiretamente tira a vida de pessoas e escolhe seu destino sem mesmo se dar conta disso. Quando me dei conta de como essa linha eterna corria entre cada personagem tudo ficou assustadoramente claro, como essa história é bem amarrada e capaz de despertar um lado seu que o faz pensar sobre o tempo e como se culpar tanto ou culpar os outros é irrelevante, não torna tudo melhor nem traz alivio ou calma a essas aguas profundas. Cada escolha sua gerará um destino diferente a sua volta, as vezes maior do que se espera.
Existem lugares que marcam as pessoas as transformando e moldando como uma escultura de barro, e existem pessoas que marcam lugares, os machucam, os impregnam de mentiras, histórias, contos e os destroem, os reconfiguram e atribuem algo “humano” ao inumano, o que me faz perguntar o que realmente define algo, ou alguém. As pessoas ruins transformaram o lago em algo ruim? Ou temos uma presença “sobrenatural” que desperta coisas ruins nas pessoas, torna suas características mais tendenciosas a maldade.
O lago de Beckford não é só um personagem no livro, é uma criatura viva, perigosa e encantadora, mentirosa e bela, esconde tantas mentiras e maus entendidos como cada personagem que o toca, todos sofrem influencias de suas aguas seja quando nadam, bebem ou passam ao menos por perto, sentem algo a mais ou a menos depois de conhecerem seu poder. O destino sempre será o mesmo tanto para os que o admiram e os que o temem, se depararem com seu reflexo e serem tragados para sua escuridão sem fim das aguas sombrias.