Silvana 11/05/2019
Em O Escravo de Capela vamos conhecer a dura realidade em que viviam os escravos na Fazenda Capela no ano de 1792. A fazenda de cana de açúcar pertence a família Cunha Vasconcelos, que é formada por Antônio Batista da Cunha Vasconcelos, que cuida da fazenda com mãos de ferro, pelo primogênito Antônio Batista Segundo, feitor da fazenda que é a crueldade em pessoa e pelo filho mais novo Inácio, que foi estudar fora e se formou médico e não concorda com o trabalho escravo e vive batendo de frente como irmão, que tem prazer em ver o sangue dos negros sendo derramado. E como todos já conhecem o patrão, tratam de se matar na lavoura para não ter as costas açoitadas por qualquer motivo, nem ter que passar a noite pendurado de cabeça para baixo, com os punhos atados e o corpo nu anavalhado cheio de sal e mel, para serem banquetes para os insetos noturnos. Porque são poucos os escravos que sobrevivem a isso.
Mas Sabola Citiwala, um negro que acaba de chegar em Capela, não conhece a impiedade do feitor e por ainda não conhecer a língua portuguesa e nem as regras da Fazenda, acaba irritando Antônio ao entoar uma canção em sua língua enquanto trabalha. Sabola é duramente castigado e fica tomado pelo ódio contra Antônio e jura que vai fugir daquele lugar. E sua determinação encontra Akili Akinsanya, um escravo que teve sua chance de fuga há quatorze anos, mas foi pego e teve suas pernas esmigalhadas por Antônio e desde então nunca mais saiu de dentro da senzala. Akili sabe como abrir as fechaduras das correntes e assim Sabola coloca seu plano de fuga em prática no dia do aniversário de sessenta anos de Antônio Batista.
Sabola rouba uma mula para fugir mais rápido, porém é descoberto, a mula é decapitada e Sabola é castigado até a morte. Antônio Segundo não se contenta em apenas matar o escravo fujão, ele corta a pena de Sabola até arrancar o membro do corpo, enquanto seu homem de confiança sufoca Sabola com um saco de pano. Tudo isso na frente dos convidados da festa e dos outros escravos. O corpo é enterrado sem a perna, que é pendurada na porta da fazenda. E os Cunha Vasconcelos pensam ter resolvido o problema, mas então na noite seguinte os peões tem uma noite de arrepiar quando juram terem visto o morto andando e junto com ele uma mula sem cabeça. Ninguém acredita neles, até porque eles estavam bêbados. Mas noite após noite as coisas só pioram e tanto a família Cunha Vasconcelos como seus peões, irão sentir na pele todo o horror que já fizeram os escravos passarem.
"O defunto do escravo estava de pé sob a ombreira e, como a mula, também ostentava um físico mais agressivo. Antes baixo e malnutrido, o negro agora era corpulento e ameaçador, como uma criatura que acabara de abandonar os tormentos do inferno."
Antes de mais nada quero falar dessa edição. Acho que vocês estão cheios de me ver elogiar os livros da Faro por aqui, mas fazer o que quando a edição te deixa de boca aberta? Desde a capa, a contra guarda, a folha de rosto, a diagramação, o miolo, tudo está um arraso, e remete tanto a história que é só a gente bater o olho e já volta tudo o que senti lendo o livro. Desde que lançou ele lá em 2017, eu fiquei bastante curiosa com a história, já que sou fã de livros de terror, mas acho bem difícil encontrar um do gênero que realmente dê medo. E eu consegui isso nesse livro. E além do terror, também temos muito horror saindo das páginas, já que a história se passa em um período vergonhoso de nossa história.
O livro é uma espécie de releitura que conta com dois personagens do folclore brasileiro, o saci e a mula-sem-cabeça. Eu amei isso, porque não lembro de ter lido nenhum livro com esses personagens, fora aqueles livros infantis que lemos na escola. Gostaria muito que nossos autores nacionais valorizassem mais nossa cultura e usassem essa imensidão de histórias que temos, mas infelizmente isso não acontece. Por isso o autor já começou me ganhando nessa parte. E foi de arrepiar a forma como ele usou dessas figuras para dar o tom da história. Eu estava lendo o livro a noite e confesso que parei e deixei para ler durante o dia porque comecei a lembrar das histórias que meu pai contava e das vezes em que ele jurou que era tudo verdade, das criaturas que ele disse ter encontrado na época em que morava em uma fazenda e me borrei de medo.
Esse foi outro ponto positivo para o autor, que prometeu terror e cumpriu. E para quem não conhece ele ainda, eu não conhecia, o Marcos é cineasta e acho que por isso eu "assisti" a história enquanto lia. Os cenários e as cenas são descritas de uma maneira que transportam a gente para dentro da história e é como se estivéssemos lá enquanto tudo acontece e eu até chegava a ouvir os assobios do saci. #medo. E outra coisa que o autor soube fazer muito bem foi mesclar tudo isso com cenas históricas e cruéis da escravidão. Por isso que falei sobre o horror, porque é de ficar arrepiada que tamanha crueldade tenha acontecido no nosso país. A gente até sabe o que aconteceu, mas lendo uma história como O Escravo de Capela, parece que a coisa toda se torna mais real, mais dolorosa. E o pior é saber que o racismo ainda não acabou até hoje.
Quanto aos personagens, Antônio pai e filho, são dois escrotos para não dizer algo feio. Nem sei quem era o pior, o filho que fazia ou o pai que permitia e até incentivava as agressões. Nem quero falar deles porque infelizmente esse era o retrato dos senhores das fazendas da época. Inácio até que tentava fazer alguma coisa, mas tentava daquele jeito de Pilatos, só para aplacar sua consciência, não porque queria realmente mudar alguma coisa. E porque queria impressionar Damiana, uma mucama da fazenda. E se tiver algo de negativo para falar do livro, seria o romance entre eles. Achei fora de propósito olhando por um angulo, mas se olhar por outro, ele foi fundamental para o desenvolvimento da história e para o ápice do livro.
E falando nisso, o final foi de tirar o chapéu para o autor, porque quando você pensa que terminou, lá vem ele com um desfecho nada provável, e fiquei de cara com as explicações no final. Fechou a história com chave de ouro. Eu poderia falar mais sobre os outros personagens, mas acho interessante cada um ir tirando suas conclusões enquanto vai lendo. Foi o que eu fiz e por isso fui muito surpreendida no final. Por isso é um livro que recomendo sem sombra de dúvida. Se você é fá de terror, precisa ler esse livro. Ele realmente entrega o que promete e entrega de uma forma genial, que me fez querer sair correndo ler outros livros do autor. E é o que farei.
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