Carlos762 09/07/2023
Em outro planeta está a porta; em nossas mentes está a chave
Confesso que quando minha amiga Ana Paula me emprestou o livro "Os Despossuídos", da autora Ursula K. Le Guin, eu não tinha grandes expectativas. Um livro de ficção científica, em que há vida inteligente em 9 planetas diferentes e que fazia algumas leituras críticas da história da humanidade não era novidade pra mim. Quem leu a série Fundação , do Isaac Asimov, sabe do que estou falando. Porém, o que encontrei nessa obra-prima da Ursula Guin foi um sopro de vida, de esperança e de frescor, num mundo em que convivemos cotidianamente com o contrário: com a morte, com os tons de cinza da rotina e com um ar que nos faz espirrar a toda hora.
Ursula conta a história de Shevek, um físico da lua Anarres. Nessa história, a lua Anarres é uma colônia "anarquista" do seu planeta Urras. Urras, por sua vez, possui um sistema parecido com a guerra fria terrestre do século XX: um país "socialista" (Thu) e várias nações capitalistas, das quais a principal é A-lo. Essa configuração poderia dar muito errado, recaindo em estereótipos, superficialidades e preconceitos. Não é o que ocorre.
A autora imagina tão bem o quanto uma possível sociedade "anarquista" plenamente desenvolvida pode parecer, que tudo nessa sociedade que nos é "estranho", é narrado de forma muito natural. Por exemplo: as ideias de competição , propriedade e prosperidade individual (em detrimento do outro) são tão estranhas a Anarres, que , quando os adultos querem dar broncas nas crianças, eles a reprimem dizendo que estão "egoizando".
Em Anarres não há polícia , advogados, juízes , nem prisões. Também não há ladrões , golpistas ou assassinos. Isso faz com que coisas muito comuns para nós pareçam muito estranhas para eles. Por exemplo:
"Eles tinham extraído a ideia de 'prisões' de episódios de A Vida de Odo, que todos os que tinham optado por estudar história estavam lendo. O livro tinha muitos pontos obscuros, e não havia ninguém em Campina Vasta que soubesse história para elucidá-los; porém, quando chegaram aos anos de Odo no forte de Drio, o conceito de 'prisão' tornara-se óbvio. E quando um professor itinerante de história veio à cidade, esclareceu o assunto, com a relutância de um aluno decente obrigado a explicar obscenidades a crianças. Sim, ele disse, prisão era um lugar onde o Estado punha as pessoas que não obedeciam às suas leis. Mas por que elas simplesmente não iam embora do lugar ? Não podiam ir embora, as portas eram trancadas. Trancadas ? Como as portas de um caminhão em movimento, para você não cair, burro ! Mas o que eles faziam dentro de uma única sala o tempo todo ? Nada. Não havia nada para fazer. Vocês viram fotos de Odo na cela da prisão em Drio, não viram ? A imagem da paciência desafiadora, a cabeça grisalha inclinada, as mãos cerradas, imóvel nas sombras abusivas. Às vezes os prisioneiros eram condenados a trabalhar. Condenados ? Bem, isso significa que um juiz, uma pessoa a quem a lei concedia o poder, ordenava que fizessem algum trabalho braçal. Ordenava ? E se não quisessem fazer? Bem, eles eram obrigados; se não trabalhassem, apanhavam. Um calafrio de tensão percorreu as crianças que ouviam, todas entre 11 e 12 anos de idade, que nunca tinham apanhado, nem visto ninguém apanhar, exceto num acesso de raiva imediato e pessoal." (P.42-3)
Além do fim do Estado, Anarres é um lugar em que também não há classes sociais. Odo, a idealizadora da comunidade "anarquista", que escreve a respeito da realização do ser humano através do trabalho poderia ser facilmente confundida com um influencer do LinkedIn nos dias de hoje:
"Uma criança livre da culpa da posse e do fardo da concorrência econômica crescerá com vontade de fazer o que for necessário fazer, e com a capacidade de alegrar-se em fazê-lo. É o trabalho inútil que entristece o coração. O deleite da mãe que amamenta, do estudioso, do caçador bem-sucedido, do bom cozinheiro, do criador talentoso, de qualquer um que faça o seu trabalho e o faça bem - essa alegria duradoura talvez seja a fonte mais profunda de afeto humano e da sociabilidade como um todo"(P.244)
Com exceção da primeira parte dessa citação, todo o resto é dito e repetido todos os dias pelos chefes, ideólogos do sistema dominante e times de "engajamento" das empresas modernas, numa tentativa de ganhar os corações e mentes dos trabalhadores para a ideia de que é possível uma realização pessoal completa através do trabalho. Ora, é possível isso hoje ? É possível uma realização completa se trabalhamos em empresas cujo eixo central (por mais que tenham a assim chamada "Agenda ESG") continua sendo a produção de lucro ? Em que, ao invés de um planejamento que vise ao bem-estar social, produzimos cada vez mais , esgotando o nosso meio ambiente e produzindo fome , enquanto há comida o suficiente para alimentar vários planetas Terra ?
Ainda sobre o meio ambiente, a autora faz uma observação bastante sagaz. Escrito em 1974, o movimento ambientalista estava apenas surgindo. Porém, nesse universo, o planeta Terra existia e a sua embaixadora dizia, a respeito do destino desse mesmíssimo planeta:
"Meu mundo, minha terra é uma ruína. Um planeta devastado pela espécie humana. Nós nos multiplicamos, nos empanturramos e brigamos até não sobrar nada, e então morremos. Não controlamos nosso apetite nem nossa violência; não nos adaptamos, nos destruímos. Mas destruímos nosso planeta primeiro. Não sobrou nenhuma floresta na Terra. O ar é cinza, o céu é cinza, está sempre quente. É habitável, ainda é habitável, mas não como este planeta. Este é um mundo vivo, uma harmonia. O meu é dissonância. Vocês, odonianos , escolheram um deserto; nós, terranos, criamos um deserto. Nós sobrevivemos lá, como vocês sobrevivem. As pessoas são resistentes ! Somos quase meio bilhão agora. Já fomos 9 bilhões. Ainda se pode ver as antigas cidades por toda parte. Os ossos e tijolos viraram pó, mas os pedacinhos de plástico, jamais…" (p.340)
O ponto que mais me surpreendeu nesse livro foi o quanto os personagens são revolucionários. E revolucionários no sentido de questionar sempre, radicalmente, se o mundo em que vivem atualmente faz sentido. E isso vale para qualquer sistema social: capitalista, "socialista" ou "anarquista". Inclusive, sobre o "socialismo real", cabe uma citação em que concordamos integralmente com a personagem Shevek:
"- Mas vocês são hierarquistas. O Estado de Thu é ainda mais centralizado que o Estado de A-lo. Uma única estrutura de poder controla tudo: governo, administração, polícia, exército, educação, leis, comércio, manufaturas. E vocês têm a economia baseada em moeda.
-Uma economia baseada no princípio de que cada trabalhador é pago pelo que merece, pelo valor do seu trabalho… Não por capitalistas a quem ele é obrigado a servir, mas pelo Estado, do qual ele é membro!
- É o trabalhador que estabelece o valor de seu próprio trabalho?
- Por que não vai a Thu para ver como funciona o socialismo real?
- Eu sei como funciona o socialismo real - respondeu Shevek. - Eu poderia falar sobre isso com vocês, mas o seu governo me deixaria explicar, em Thu ?" (P. 138)
Mesmo na sociedade "anarquista" , a inércia social, o comodismo e a rotina podam talentos brilhantes, como o próprio físico Shevek - que vai pra Urras justamente para desenvolver a sua própria pesquisa - e o seu amigo de infância Dab, que diz:
"Mas você falou em sofrimento físico, de um homem morrendo, com queimaduras. Eu falo de sofrimento espiritual ! De pessoas vendo seu talento, seu trabalho, suas vidas sendo desperdiçadas. De mentes inteligentes se submetendo a mentes burras. De força e coragem sendo estranguladas pela inveja , pela cobiça por poder, pelo medo da mudança. Mudança é liberdade, mudança é vida… Existe alguma coisa mais básica ao pensamento odoniano do que isso ? Mas não existe mais mudança! Nossa sociedade está doente. Você sabe disso. Você está sofrendo dessa doença. Dessa doença suicida !" (P.166)
A leveza com que a autora narra episódios que parecem extremamente corriqueiros para nós é extremamente bela. Você consegue imaginar do que se trata a descrição a seguir ?
"Shevek despertou com os sinos da torre da capela repicando a Primeira Harmonia para o serviço religioso de manhã. Cada nota era como uma pancada na cabeça. Estava tão enjoado e trêmulo que por um bom tempo não conseguiu sentar na cama. Pôde finalmente se arrastar até o banheiro e tomar um longo banho frio, que aliviou a dor de cabeça; mas o corpo todo continuava a lhe parecer estranho - a lhe parecer, de algum modo, repulsivo. Quando começou a ser capaz de pensar de novo, fragmentos e momentos da noite anterior vieram-lhe à mente, vívidos, cenas breves e absurdas da festa na casa de Vea. Tentou não pensar nelas, e não conseguiu pensar em mais nada. Tudo, tudo se tornou repulsivo. Sentou-se à escrivaninha e ficou sentado Aki por meia hora, com os olhos fixos, imóvel, totalmente desolado."(P.267)
Pois bem: trata-se da boa e velha ressaca. No planeta de Anarres o consumo de álcool era praticamente inexistente e, quando Shevek bebe pela primeira vez (cabe dizer: tentando fugir da realidade opressiva em que se encontrava, no momento, no planeta de Urras), ele experimenta esse terrível efeito colateral que muitos de nós conhecemos.
Hoje, mais do que nunca , vivemos uma "Era dos Extremos", como diria Eric Hobsbawm. Por um lado, a ultra-direita, que quer manter o mundo mais cinza, mais hipócrita, menos livre e mais desigual. E, hoje em dia, quer isso de maneira muito mais violenta do que há dez anos. De outro, dentre os que querem mudar, há alguns que param no meio do caminho revolucionário: acham que é possível mudar o sistema por dentro , sem mudar as regras do jogo. Por outro, ainda, há os saudosos do que foi a ditadura soviética, que se apropriou de um movimento revolucionário legítimo e o transformou no seu oposto, na Era Stalin. Nós achamos que a obra de Ursula bate em todas essas falsas alternativas. É profundamente revolucionária, profundamente anti-dogmática e, o que é mais importante, profundamente humana.
A obra de Ursula não é apenas mais uma obra de ficção científica. Em primeiro lugar, porque foi uma das primeiras mulheres a fazer sucesso no setor. Em segundo lugar, porque é uma obra que fala do futuro, não do passado, como muitos sucessos de venda baseados no mundo medieval. E, em terceiro lugar, porque fala de um futuro construído e protagonizado por toda a sociedade humana, não apenas por cientistas super-dotados, como acontece em muitas outras obras (como do próprio Asimov!). Encerro essa resenha com um discurso do cientista Shevek, em uma manifestação protagonizada por vários desses "invisíveis" que, do passado , reivindicam o futuro:
"É o nosso sofrimento que nos une. Não é o amor. O amor não obedece à mente e transforma-se em ódio, quando forçado. O laço que nos une vai além da escolha. Somos irmãos. Somos irmãos naquilo que compartilhamos. Na dor, que cada um de nós deve sofrer sozinho, na fome, na pobreza, na esperança, sabemos que somos irmãos. Sabemos, pois tivemos de aprender. Sabemos que não há ajuda para nós exceto a ajuda mútua, que nenhuma mão vai nos salvar se não estendermos a nossa mão. E a mão que vocês estendem está vazia. Vocês não têm nada. Não possuem nada. Não são donos de nada. Vocês são livres. Tudo o que vocês têm é aquilo que vocês são, e aquilo que dão."(P.294)