Bruno Oliveira 22/08/2023Lendo BaumanMinha primeira surpresa com Bauman foi perceber que ele era muito melhor do que as pessoas que recomendavam sua obra. Seu texto tinha rigor acadêmico e consistência, sendo também acessível, não para o público mais leigo, mas para o leitor mais ou menos informado. Ainda assim, Bauman também atrai o público de pouco repertório, o que talvez se deva a ele ter outras obras, mais direcionadas às massas (não sei se realmente tem), no entanto também a algumas características de sua escrita que tratarei logo mais.
Para quem não sabe (eu mesmo não sabia), Bauman segue aquela bola de lã cujo fio foi puxado pela primeira vez por Karl Marx, depois por seus sucessores, e que continua desenrolando até hoje. Contudo, por mais que esteja ligado ao marxismo, Modernidade Líquida não é uma obra de filosofia marxista, porém uma espécie de produto herético dela. A bem dizer, Bauman está mais perto de uma Teoria Crítica desencantada do que do próprio Marx. Conceitos clássicos como Revolução, Luta de Classes e outros até estão aqui, mas não como operadores filosóficos e sim como objetos de análise. O que interessa ao autor é aquela relação entre infra e superestrutura que gera modos específicos de pensamento. Por isso, mesmo quando trata de conceitos marxistas (ou dos conceitos de Weber, Orwell e Huxley), seu objetivo é entender que contexto histórico fez com que esse pensamento fizesse sentido e, é claro, que mudanças propiciaram sua perda de sentido. Quer dizer, por que nenhuma pessoa razoável acredita em revolução comunista hoje em dia? E por que já se acreditou nisso um dia? O que nos fez deixar de temer a distopia de Orwell? Bauman não esta preocupado em dar cada uma dessas respostas, mas em tentar mostrar o que vem mudando desde a Modernidade que faz com que essas teorias ganhem ou percam poder explicativo.
Para tanto, o autor não se detém unicamente nos produtos mais intelectualizados da cultura e discute também os mais banais: programas de auditório, livros de autoajuda, cursos de gurus e todas essas coisas que orientam o cotidiano das pessoas. O resultado, inclusive, é muito interessante e, retomando aquela questão da popularidade, creio que essa proximidade com o dia a dia seja um dos elementos que contribuíram para divulgar o autor. A impressão que o livro nos transmite é que Bauman não está só pensando questões intelectuais gerais, porém igualmente tentando explicar o presente por meio dos elementos mais comuns de nosso cotidiano.
Aquilo que costura o livro não é tanto uma tese rigorosa e sólida a ser demonstrada e desenvolvida a cada capítulo, porém uma figura de linguagem a qual é estabelecida logo no primeiro capítulo: a metáfora da liquidez. Líquido é estado em que a matéria não apresenta uma forma específica, dobrando-se perante as forças externas e acomodando-se ao recipiente em que se está. Depois de apresentada, a metáfora é desenvolvida ao longo de diversos capítulos, assentando a perspectiva de que a Modernidade (*) teria aprofundado a liquidez das relações humanas. Assim, por mais que o conceito de liquidez venha das ciências (da Química), ele está mais para um recurso literário do que para um operador científico rigoroso. Trata-se menos de uma argumentação lenta e pesada e mais da exposição de determinada ótica — é como se o autor dissesse: “leiam-me e me digam se faz sentido o que estou apontando”. Para alguns, esse modo de fazer filosofia pode parecer um tanto frouxo e, convenhamos, até é. Em página alguma se encontrará aqui aquele rigor presente num Tomás ou Espinosa, tampouco a profundidade de um Hobbes ou Marx; contudo, também não se espera algo assim do livro. Aquilo mesmo que ele apresenta, esse processo sem forma definida, não poderia ser exposto num formato muito rígido ou incorreria no risco de solidificar aquilo que, pelo que o próprio autor entende, não é sólido.
Bem, o que seria essa liquidez das relações humanas e como isso está ligado às transformações trazidas pela Modernidade, eis algo só se descobre lendo o livro; não exporei aqui. Alguém já deve ter feito, com mais competência e disponibilidade, esse trabalho. Desejo apenas enfatizar que, em suma, Bauman é um autor legal. Não se trata de nenhum gigante, mas de um bom observador de nosso tempo, o que já é grande coisa.
(*) Modernidade é um conceito mais filosófico do que propriamente histórico, envolvendo não só uma época, mas um conjunto de modos de pensar novos, oriundos da ciência, filosofia, jurisprudência, enfim, que diferem significativamente dos períodos anteriores e inauguram uma porção de coisas que não convém detalhar aqui, mas que ficam subentendidos nesse termo.
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