spoiler visualizarBarbara 14/04/2024
Se nada podia nos salvar, nem o dinheiro, nem um corpo masculino, nem os estudos, tanto melhor destruir tudo de uma vez.
Enfim, ninguém, exceto eu, parecia perceber que o casamento apenas celebrado? e que provavelmente duraria até a morte dos cônjuges, entre muitos filhos, numerosíssimos netos, alegrias e dores, bodas de prata, bodas de ouro?, para Lila, não importa o que o marido fizesse para obter seu perdão, já estava acabado.
Ela o amava, o amava como as meninas das fotonovelas. Durante o resto da vida lhe sacrificaria todas as suas qualidades, e ele nem sequer se daria conta do sacrifício, teria em torno de si a riqueza de sentimentos, de inteligência e de fantasia que a caracterizava sem saber o que fazer com isso, simplesmente a esgotaria. Eu? pensei? não sou capaz de amar ninguém assim,
Palavras: com elas se faz e se desfaz como se quer. Lila sempre fora exímia com as palavras, mas, contrariamente às expectativas, naquela ocasião não abriu a boca.
ao contar aquela mentira, ela tinha adotado um tom irônico, e todos acreditaram nela com ironia, especialmente as mulheres, que sabiam desde sempre o que se devia dizer quando os homens que as amavam e que elas amavam lhes davam uma coça de jeito.
Será possível que os pais não morram nunca, que todo filho os carregue dentro de si inevitavelmente?
Claro, a explicação era simples: tínhamos visto nossos pais baterem em nossas mães desde a infância. Tínhamos crescido pensando que um estranho não podia sequer nos tocar, mas que o pai, o noivo e o marido podiam nos encher de tapas quando quisessem, por amor, para nos educar, para nos reeducar. Consequentemente, como Stefano não era o odioso Marcello, mas o jovem a quem ela dissera amar muitíssimo, aquele com quem tinha se casado e com o qual decidira viver para sempre, eis que se submetia até o fundo à responsabilidade da própria escolha. Mas nem tudo se encaixava.
Disse a ela: ?Eu estou bem com Antonio, apesar de não o amar.? E esperei que, segundo nossos velhos costumes, ela soubesse colher naquela afirmação uma série de perguntas ocultas. Embora eu ame Nino? é o que eu estava dizendo sem dizer?, me sinto prazerosamente excitada só de pensar em Antonio, nos beijos, em nossa agarração e esfregação nos pântanos. O amor em meu caso não é indispensável ao prazer, nem sequer o afeto. Então será possível que o nojo e a humilhação comecem depois, quando um macho a submete e violenta a seu bel- prazer pelo único fato de que agora você lhe pertence, com ou sem amor, com ou sem afeto? O que ocorre quando se está em uma cama, subjugada por um homem?
A riqueza que desejávamos na infância talvez fosse isso, pensei: não as arcas com moedas de ouro e diamantes, mas uma banheira, deixar- se imergir assim todos os dias, comer pão, salame, presunto, ter bastante espaço, inclusive no banheiro, ter um telefone, ter a dispensa e a geladeira cheias de comida, a foto em moldura de prata sobre o bufê exibindo sua figura em vestido de noiva, ter esta casa por inteiro, com a cozinha, o quarto de casal, a sala de jantar, as duas varandas e o quartinho onde fico trancada a estudar e onde, embora Lila nunca tenha mencionado, em breve, quando vier, dormirá uma criança.
Por mais que eu assumisse um tom desenvolto e uma disciplina férrea, cedia continuamente, com doloroso comprazimento, a ondas de infelicidade. Tudo parecia conjurar contra mim. Na escola, não conseguia alcançar as notas de antes, mesmo tendo recomeçado a estudar. Os dias transcorriam sem sequer um momento em que eu me sentisse viva. O caminho para o colégio, para a casa de Lila, para os pântanos eram cenários apagados.
Como era difícil orientar- se, como era difícil não violar nenhuma das detalhadíssimas regras masculinas.
Eu estava ansiosa demais e com a impressão de estar sempre errada, não importa o que fizesse.
Como era fácil fazer mal.
De repente me veio a impressão de ter vivido com uma espécie de limitação do olhar: como se só fosse capaz de focalizar nosso grupo de meninas, Ada, Gigliola, Carmela, Marisa, Pinuccia, Lila, a mim mesma, minhas colegas de escola, e jamais tivesse realmente notado o corpo de Melina, o de Giuseppina Peluso, o de Nunzia Cerullo, o de Maria Carracci. O único corpo de mulher que eu tinha examinado com crescente preocupação era a figura claudicante de minha mãe, e apenas por aquela imagem me sentira perseguida, ameaçada, temendo até agora que ela se impusesse de chofre à minha própria imagem. Naquela ocasião, ao contrário, vi nitidamente as mães de família do bairro velho. Eram nervosas, eram aquiescentes. Silenciavam de lábios cerrados e ombros curvos ou gritavam insultos terríveis aos filhos que as atormentavam. Arrastavam- se magérrimas, com as faces e os olhos encavados, ou com traseiros largos, tornozelos inchados, as sacolas de compra, os meninos pequenos que se agarravam às suas saias ou que queriam ser levados no colo. E, meu Deus, tinham dez, no máximo vinte anos a mais do que eu. No entanto pareciam ter perdido os atributos femininos aos quais nós, jovens, dávamos tanta importância e que púnhamos em evidência com as roupas, com a maquiagem. Tinham sido consumidas pelo corpo dos maridos, dos pais, dos irmãos, aos quais acabavam sempre se assemelhando, ou pelo cansaço ou pela chegada da velhice, pela doença. Quando essa transformação começava? Com o trabalho doméstico? Com as gestações? Com os espancamentos? Lila se deformaria como Nunzia? De seu rosto delicado despontaria Fernando, seu andar elegante se transmutaria nas passadas abertas e braços afastados do tronco, de Rino? E também meu corpo, um dia, cairia em escombros, deixando emergir não só o de minha mãe, mas ainda o do pai? E tudo o que eu estava aprendendo na escola se dissolveria, o bairro tornaria a prevalecer, as cadências, os modos, tudo se confundiria numa lama escura,
Recordei- me de Lila enquanto narrava a nós, meninas, o homicídio, o sangue escorrendo na panela de cobre, e defendia que o assassino de dom Achille não era um homem, mas uma mulher, como se ela mesma tivesse visto e ouvido, na história que nos contava, a forma de um corpo feminino desfazer- se por força de ódio, por urgência de vingança ou de justiça, e perder sua constituição.
Talvez nem ela mesma soubesse o que queria, só sentia que não era capaz de encontrar a paz.
Havia algo de perverso na desigualdade, e agora eu compreendia. Algo que agia em profundidade, que escavava além do dinheiro. Não bastava o caixa das duas charcutarias nem o da fábrica de calçados ou da loja de sapatos para ocultar nossa origem. A própria Lila, ainda que tirasse mais dinheiro do caixa do que já pegava, ainda que faturasse milhões, trinta, até cinquenta, não conseguiria. Eu me dera conta disso e finalmente havia uma coisa que eu sabia melhor que ela, que eu aprendera não naquelas ruas, mas na entrada da escola, olhando a garota que vinha encontrar Nino. Ela era superior a nós, assim, sem querer. E isso era insuportável.
Senti que estava insatisfeita. Porque tinha sido deixada para trás. Culpa da aliança no anular, pensei. Ou talvez aqui sua beleza não seja tão reconhecida, vale mais a de Nadia. Ou talvez fosse ela que, mesmo tendo um marido, mesmo tendo ficado grávida, mesmo tendo feito um aborto, mesmo tendo inventado sapatos, mesmo sabendo fazer dinheiro, não soubesse quem ela é nesta casa, não soubesse se impor como no bairro.
não é com planejamento que o mundo se transforma, é preciso sangue, é preciso violência.
Era sua maneira de pôr ordem nos pensamentos? falar, falar, falar?, mas certamente, pensei, também um sinal de solidão. Orgulhosamente me senti semelhante a ele, com a mesma necessidade de me conferir uma identidade culta, de impô- la, de dizer: vejam as coisas que sei, vejam como estou me transformando.
me sentia cada vez mais propensa às teses que teorizavam intervenções competentes que, se realizadas a tempo, acabariam resolvendo os problemas, eliminando as injustiças e prevenindo os conflitos. Tinha rapidamente aprendido aquele esquema de raciocínio? nisso sempre fui boa? e o aplicava toda vez que Nino sacava questões sobre as quais havia lido aqui e ali: colonialismo, neocolonialismo, África. Mas numa tarde Lila disse devagar a ele que não havia nada que pudesse evitar o conflito entre ricos e pobres. ?Por quê??. ?Os que estão em baixo querem ir para cima, os que estão em cima querem permanecer em cima, e de um modo ou de outro sempre se acaba com cusparadas e chutes na cara.? ?Justamente por isso o ponto central é resolver os problemas antes que se chegue à violência.? ?E como? Levando todos para cima, levando todos para baixo?? ?Encontrando um ponto de equilíbrio entre as classes.? ?Um ponto onde? Os de baixo se encontram a meio caminho com os de cima?? ?Digamos que sim.? ?E os de cima vão descer de bom grado? E os de baixo vão renunciar a subir mais alto?? ?Caso se trabalhe para resolver bem essas questões, sim. Não acredita?? ?Não. As classes não jogam trunfo, mas lutam, e a luta é até a última gota de sangue.?
?Você ama pela vida inteira pessoas que nunca sabe realmente quem são?.
O que me levava a agir assim? Mantinha meus sentimentos em surdina porque me assustava a violência com que, ao contrário, em meu íntimo eu queria coisas, pessoas, elogios, vitórias? Temia que, caso não conseguisse obter o que queria, aquela violência explodiria em meu peito tomando o rumo dos piores sentimentos, por exemplo, aquele que me levara a comparar a bela boca de Nino à carne de um rato morto? Então era por isso que, mesmo quando me dispunha a avançar, estava sempre pronta a dar um passo atrás? Era por isso que eu sempre tinha pronto um sorriso gracioso, uma risada contente, mesmo quando as coisas iam mal? Por isso que, mais cedo ou mais tarde, eu acabava achando justificativas plausíveis para quem me fazia sofrer?
Tinha a impressão de assistir a um teatrinho sem substância: brincavam de representar dois namorados, ambos sabendo que não o eram e não podiam ser; um já tinha namorada, a outra era mesmo casada. Às vezes os olhava como divindades decaídas: antes tão maravilhosos, tão inteligentes, e agora tão idiotas, empenhados num jogo idiota.
Aos homens a gente se afeiçoa aos poucos, prescindindo do fato de coincidirem ou não com o modelo masculino que elegemos nas várias fases da vida.
Compreendi de repente por que não conquistei Nino, por que Lila o conquistou. Eu não era capaz de me entregar a sentimentos verdadeiros. Não sabia me deixar arrastar além dos limites. Não possuía aquela potência emotiva que levara Lila a fazer de tudo para gozar aquele dia e aquela noite. Me mantinha recuada, à espera. Já ela tomava as coisas para si, as queria de verdade, se apaixonava, ia para o tudo ou nada e não temia o desprezo, o escárnio, as cusparadas, as surras. Ela enfim merecera Nino porque considerava que amá- lo já era tentar conquistá- lo, e não esperar que ele a quisesse.
Minha vida me leva a imaginar como teria sido a dela se por acaso lhe houvesse cabido aquilo que me coube, que uso ela teria feito de minha sorte. E sua vida se apresenta continuamente na minha, nas palavras que pronunciei, dentro das quais há muitas vezes um eco das suas, naquele determinado gesto que é uma readaptação de um gesto dela, naquele meu a menos que é assim por um seu a mais, naquele meu a mais que é a caricatura de um seu a menos.
Alguns, como os Solara, como Pasquale, Antonio, Donato Sarratore, até como Franco Mari, meu namorado da Normal, gostavam de nós com as tonalidades mais diversas? agressivas, subalternas, descuidadas, atenciosas?, mas gostavam sem sombra de dúvida. Outros, como Alfonso, como Enzo, como Nino, eram? segundo tonalidades igualmente diversas? de uma compostura distante, como se entre nós e eles houvesse um muro e o esforço de escalá- lo fosse nosso.
A relação entre o dinheiro e a posse das coisas a decepcionara. Não queria nada nem para si, nem para o filho que iria ter. Ser rica, para ela, significava ter Nino, e, como Nino tinha ido embora, se sentiu pobre de uma pobreza que não havia dinheiro capaz de apagar. E, como não havia remédio para sua nova condição? tinha cometido muitos erros desde pequena, e todos tinham confluído para aquele erro maior: acreditar que o filho de Sarratore não pudesse prescindir dela assim como ela não podia viver sem ele, que eles estivessem fadados a um único e excepcional destino, que a fortuna de se amar duraria para sempre e tiraria a força de qualquer outra necessidade?, se sentiu culpada e decidiu não sair mais, não procurá- lo, não comer, não beber, mas esperar que sua vida e a do bebê perdessem qualquer contorno, qualquer definição possível, e ela não tivesse mais nada na cabeça, nem uma migalha do que a deixava mais amarga, vale dizer, a consciência do abandono.
Porém, mesmo fazendo muitos progressos, continuei com a preocupação de não estar à altura, de dizer coisas erradas, de revelar o quanto eu era ignorante e inexperiente justo nas coisas que todos sabiam.
Eu tinha compreendido desde o início que Franco, sua presença em minha vida, tinha ocultado minha real condição, mas não a havia mudado, eu não tinha conseguido me integrar de fato. Estava entre os que se esforçavam dia e noite, que obtinham ótimos resultados, que eram até tratados com simpatia e estima, mas que nunca sustentariam com postura adequada a alta qualidade daqueles estudos. Eu sempre teria medo: medo de dizer a frase errada, de usar um tom excessivo, de estar vestida inadequadamente, de revelar sentimentos mesquinhos, de não ter pensamentos interessantes.
Será possível que nem os momentos felizes de prazer resistam a um exame rigoroso?