sr. felix 24/02/2023
Chabouté provando que palavras têm poder.
"Quem não sabe é como quem não enxerga, meu filho" ? foi o que me disse uma senhorinha um dia desses no trabalho. Achei um ótimo aforismo e decidi guardar pra mim. Agora, ao terminar a leitura imparável de Solitário, vejo que são as palavras mais adequadas pra descrever o conceito desta obra magnífica.
Da história, o básico. Um homem com deformidades físicas vive sozinho num farol, tendo como companhia um peixinho, alguns objetos e um volumoso dicionário. É por intermédio do último que consegue ter aceso ao significado das palavras e com elas navegar pelo oceano do imaginário. Confinado em seu casulo de pedra, palavras são a única via de escape.
Contudo, também são elas que lhe apresentam sua condição. O pobre solitário ? como já se espera de quem não tem contato com o mundo exterior ? é ingênuo. Ele parece aceitar sua vida com inflexibilidade, age como se viver circulando em redor de uma rocha fosse o normal, até esbarrar com as palavras "solidão" e "monstro" no seu dicionário.
Ambas possuem significados que descrevem seu estado até então ininteligível e portanto indecifrável. Em face disso, uma vez esclarecido, foge-lhe a ingenuidade e só lhe resta o peso da verdade ? e, logo, o da tristeza. Não obstante, ao conhecer a verdade, o desejo de ser livre é germinado. E o farol não será mais o mesmo.
Quanto maior se torna o nosso repertório vocabular, mais extenso se torna o nosso mundo. A linguagem não é só uma ferramenta de comunicação, um mero mecanismo de funcionalidade imediata por meio da qual conseguimos suprir as nossas necessidades mais básicas. Pra isso, bastaria a pantomima.
O que nos distingue dos outros membros do reino animal é a fala. As palavras, que dão sentido as coisas ao nosso redor e são o instrumento da nossa faculdade primordial ? a imaginação ? não são subprodutos do processo evolutivo, mas sim a nossa grande conquista.
Portanto, como diria Brodsky, a literatura e a poesia, sendo as mais altas formas de locução, é o objetivo central da nossa espécie. Palavras têm poder. Elas bordam a tecitura da realidade enquanto colorem o sentido das nossas circunstâncias. Temos magia a nosso alcance, e Chabouté soube nos mostrar isso com genialidade em Solitário.