Coruja 25/06/2013Fronteiras do Universo - (o livro, o filme e uma aula de teologia)Perdi a conta do número de vezes em que fiz releituras desse livro... Fronteiras do Universo é, para mim, uma das obras-primas da fantasia moderna; não apenas pelo mundo - ou mundos - riquíssimos que Pullman aqui criou, mas também pelas questões que ele desperta com a série.
Muita gente polemiza em torno desses livros pela crítica religiosa que eles trazem. Tem gente que fiz que Pullman é o oposto do Lewis, das Crônicas de Nárnia - ambos trabalham com alegorias religiosas, mas enquanto um glorifica o mundo bíblico, o outro é um iconoclasta que não respeita quaisquer símbolos.
Não concordo com essa visão. Já li algumas entrevistas e discursos do Pullman sobre toda essa polêmica e o que compreendi tanto da narrativa nos livros quanto de suas explicações é que a crítica é a uma religião politizada, em que um braço da Igreja tem acesso a governo, a exército, se impõem sobre a ciência, censura, queima; uma Igreja em que os fins justificam os meios e o controle absoluto é o fim e o meio dela.
Isso vai ficando mais claro ao longo da leitura dos livros, mas dá para sentir já nesse início - a corrente política que arrasta Lyra na festa de Mrs. Coulter é quando começamos a enxergar a ponta do iceberg, colocando as primeiras peças do quebra-cabeça no lugar.
Golpe de gênio do Pullman foi colocar no centro dessa trama, como protagonista absoluta alguém como Lyra. Lyra é inteligente, vibrante, autêntica. Ela não é um adulto em miniatura, mas uma criança e Pullman nunca nos deixa esquecer disso. A perda da inocência infantil dela é um dos motes centrais da história - Lyra cresce ao enfrentar os obstáculos, ao enfrentar seu próprio medo inúmeras vezes, amadurecendo aos poucos, dolorosamente.
E como é doloroso o caminho que ela tem de percorrer em A Bússola Dourada...
Lyra é uma criança e, sendo uma criança, não tem como enxergar a princípio a malícia de Mrs. Coulter - aliás, considerando que a pessoa que primeiro a alerta contra a mulher é o próprio Reitor de Oxford e que ela já tinha um pé atrás com ele por tê-lo visto tentar envenenar Lorde Asriel, não é nenhuma surpresa que ela não o escute.
Mrs. Coulter é glamour e brilho e para uma criança - especialmente uma criança como Lyra, com uma cabeça cheia de histórias - a figura misteriosa da mulher é excitante, fascinante... O perigo que a mulher representa, a princípio, prende Lyra, especialmente porque Mrs. Coulter lhe parece ser o equivalente feminino mais próximo da figura que ela considera mais admirável e aterrorizante de sua vida: Asriel.
Aliás, ainda que eu não goste do filme, vou dizer que não consigo pensar em nenhum ator melhor para fazer o papel do Lorde Asriel, com sua frieza e controle extraordinários, que o Daniel Craig. Asriel não é um nobre de salão, mas um explorador, rico e inteligente, mas bruto também. Prático, passional. Alguém que não mede as consequências de seus atos para conseguir aquilo que deseja.
Esse é só o primeiro volume, mas um mundo inteiro de coisas acontece aqui - sussurros de coisas que mais tarde voltarão para assombrar os personagens: a questão do Pó, que é um dos grandes mistérios da história; a figura de pesadelo dos Papões, o aletômetro, Asriel e Mrs. Coulter, os gípcios... todos peças de um grande tabuleiro de xadrez que apenas se iniciou...
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)