Ana Aymoré 20/07/2020Uma reescrita de Camus traçada em geloDiante do tribunal, no dia de seu julgamento pelo homicídio de um árabe, Mersault, ao ser questionado sobre a motivação do crime, responde "que fora por causa do sol". A afirmação do protagonista de O estrangeiro, de Albert Camus, é um dos pontos cruciais de muitas das análises desse romance, que costumam associá-la ao sentimento de absurdo que permeia a escrita camusiana.
.
Nos ensaios que servem à guisa de prefácio e posfácio a Devoção, Patti Smith faz uma espécie de arqueologia de seu próprio conto, nos fornecendo inestimáveis eixos que circunscrevem (como as margens do lago congelado sobre o qual desliza, em seus patins, a obstinada Eugenia) sua leitura. Se no texto que abre o volume ela nos conta como uma fotografia de Simone Weil e o vídeo de uma patinadora russa, misturados num sonho, inspiraram sua personagem, a narrativa final, que reflete sobre a imaginação literária a partir de uma visita à casa de Camus, nos mostra em que medida Devoção pode ser lida como uma reelaboração intertextual de O estrangeiro e, de forma mais ampla, como uma espécie de fábula metaliterária, sendo a literatura esse processo de súbita iluminação (o sol argelino de Mersault, rebatido na "lucidez terrificante" de Eugenia, ela também uma assassina, afinal), que cria um universo e seus habitantes para depois condená-los cruelmente à morte sem trégua.
.
Devoção é um desses contos que merece ser lido e relido, para que se possa aprofundar em suas múltiplas camadas de significação, e observar o virtuosismo de Smith, cuja escrita na folha em branco não deixa nada a dever ao traçado das lâminas da patinadora no gelo (aliás, não por acaso a autora nos provê, também, com as imagens facsimilares de suas anotações para o conto). E porque a criação literária, mais uma vez, aqui, associa a condição de consciência profunda à ausência de respostas fáceis às nossas inquietações: nem sempre os motivos são claros, nem sempre uma explicação é suficiente. Então, se a literatura não nos dá o consolo da resposta definitiva, "Por que escrevemos? [...] Porque [nós, sonhadores!] não podemos somente viver."