Larissagris 16/02/2023OS FORNOS DE HITLER (OLGA LENGYEL)Pairava um ar de pesadelo. Nos trilhos, um trem interminável aguardava. Nenhum carro de passageiros e, sim, vagões de gado, cada um abarrotado com candidatos a deportação. (Pág. 14)
O vagão de gado se tornara um abatedouro. Cada vez mais preces pelos mortos eram ouvidas na atmosfera sufocante. Mas os SS não nos permitiam enterrá-los, ou removê-los. Éramos obrigados a conviver com nosso cadáveres. Os mortos, os doentes contagiosos, os que padeciam de enfermidades orgânicas, os sedentos, os famintos e os loucos deveriam viajar juntos naquela geena de madeira. (Pág. 19)
A estrada estava em bom estado. Era início de maio e um vento frio nos trouxe um odor peculiar, adocicado, muito parecido com carne queimada, embora não a tenhamos identificado dessa maneira. Aquele cheiro nos saudou quando chegamos e ficou conosco para sempre. (Pág. 26)
Eu ainda era incapaz de conceber que mulheres com mente sadia e inocentes de qualquer crime pudessem ser tão humilhadas e degradadas. Mais do que tudo, eu estava longe de imaginar que, dentro de pouco tempo, eu estaria reduzida àquela mesma condição deplorável. (Pág. 28)
Foi a primeira vez que apanhei no campo. Cada golpe cortou meu coração como acontecia com a minha carne. Éramos almas perdidas. Deus, onde você está? (Pág. 31)
De manhã, tínhamos que nos contentar em lavar as tigelas do jeito que podíamos, antes de pôr dentro delas nossas ínfimas rações de açúcar de beterraba ou margarina. Nos primeiros dias, nossos estômagos embrulhavam ao pensar em usar o que, à noite, fora utilizado como urinol. Mas a fome fala mais alto, e estávamos tão famintas que nos dispunhamos a comer qualquer coisa. Não havia o que fazer se a comida tinha de ser colocada naquelas tigelas. (Pág. 38)
Só uma coisa me desanimava mais: ver uma mulher bonita e inteligente se debruçar sobre uma poça d'água e beber com avidez o raso conteúdo para matar a sede. Ela não ignorava o perigo de beber uma água tão insalubre. Mas a maioria das deportadas já descera tão baixo que estavam surdas a quaisquer súplicas. A própria morte só poderia vir como uma libertação. (Pág. 42)
"Logo na chegada! Quando eles separam os familiares? Meu Deus! Coloquei meu garotinho do lado esquerdo. Com meu amor imbecil, disse que ele ainda não tinha 12 anos. Quis poupá-lo dos trabalhos forçados e com isso o matei!" (Pág. 46)
A sensação de sede e boca seca está intrinsecamente ligada a todas as minhas lembranças do campo, pois nossa cota diária não ultrapassava meio copo de água, no máximo dois goles. (Pág. 52)
A maioria das internas de Auschwitz se resignava com seu destino e criava uma filosofia simplória: uma fora pega pelos alemães por ter tido azar, outras, ainda estavam livres e em casa por terem sorte. (Pág. 54)
Esse espetáculo era sempre trágico e humilhante. Humilhante para as pobres sacrificadas e para toda a humanidade. Porque aquelas criaturas desgraçadas levadas para o abate eram seres humanos - como você e eu. (Pág. 57)
Todos os dias, uma multidão se aglomerava do lado de fora. Aquela manada de mulheres sujas e fedorentas inspirava um profundo nojo das companheiras e até de si mesmas. Não nos reuníamos com a intenção de nos lavar, mas esperando saciar a sede constante. De que adiantava ir até lá para nos limparmos, se não tínhamos sabão, escovas de dente ou pente? (Pág. 61)
Trezentos e sesenta cadáveres a cada meia hora, que era o tempo necessário para reduzir a carne humana a cinzas, perfaziam 720 por hora, ou 17.280 cadáveres a cada turno de 24 horas. E os fornos, com assassina eficiência, funcionavam dia e noite. É preciso, entretanto, levar em consideração as valas da morte, capazes de destruir 8 mil cadáverespor dia. Em números redondos, 24 mil cadáveres eram eliminados diariamente. (Pág. 89)
Já descrevi a primeira seleção. Velhos, doentes e crianças com menos de 12 ou 14 anos eram mandados para a esquerda, o resto para a direita. À esquerda significava a câmara de gás e o crematório de Birkenau; à direita, significava indulto temporário e Auschwitz. (Pág. 92)
Sabia-se que os efeitos do "Zyklon-B era devastador. No entanto, isso nem sempre acontecia, talvez porque houvesse tantos homens e mulheres para serem mortos que os alemães o economizassem. Além disso, é possível que alguns dos condenados fossem mais resistentes. De qualquer forma, era frequente haver sobreviventes, mas os alemães não tinham piedade. Mesmo respirando, os moribundos eram levados para o crematório e atirados no forno. (Pág. 94)
Pelos relatos das testemunhas oculares, pode-se imaginar como era o espetáculo nas câmaras de gás depois que as portas eram abertas. Em seu sofrimento hediondo, os condenados tentavam rastejar uns sobre os outros. Durante a agonia, alguns cravavam as unhas na carne de seus companheiros. Como regra geral, os cadáveres estavam tão comprimidos e enredados que era impossível separá-los. Os técnicos alemães inventaram varas com ganchos que era cravados na carne dos cadáveres para puxá-los. Uma vez removidos da câmara de gás, os corpos eram transportados para o crematório. Já mencionei que, não raro, algumas vítimas ainda saíam vivas. Mas eram tratadas como mortos e cremadas junto com os demais. Um guincho transportava os corpos até os fornos. Os corpos eram arrumados com método. Os bebês eram colocados embaixo, como lenha, depois vinham os mais magros e, por fim, os corpos maiores. Enquanto isso, funcionava, implacável, o serviço de resgate. Os dentistas retiravam os dentes de ouro e de prata, pontes, coroas e placas. Outros funcionários do sonderkommando reuniam anéis, pois, apesar de todo o controle, alguns internos ainda tinham guardado os seus. Naturalmente, os alemães não queriam perder nada que tivesse valor. Os super-homens nórdicos sabiam como lucrar com tudo. Enormes barris eram usados para coletar a gordura humana que derretera com as altas temperaturas. Não era de estranhar que sabão do campo tivesse um cheiro tão peculiar. Não era surpreendente também que os internos desconfiassem do aspecto de alguns pedaços de salsicha!
A vida dos membros do sonderkommando era desumana. Muitos enlouqueciam. Inúmeras vezes um marido era obrigado a queimar a própria esposa; um pai, os seus filhos; um filho, os seus pais; um irmão, sua irmã. (Pág. 97)
Eu tinha, então, duas razões para viver: primeiro, trabalhar com o movimento de Resistência e me manter em pé o máximo que podia; segundo, sonhar e rezar pelo dia em que seria libertada para contar ao mundo: "Foi isto o que vi com meus próprios olhos. Não devemos permitir que isso jamais aconteça outra vez" (Pág. 98)
Quando cavávamos próximo ao crematório, ouvíamos os últimos gritos dos que estavam sendo levados para as câmaras de gás. Quando trabalhávamos perto da estação ferroviária, era uma tortura ouvir os inocentes que tinham acabado de chegar. (Pág. 108)
Não, elas não podiam entender a importância do que eu dizia. Elas me viam com desprezo. O que poderiam lhes dizer mulheres vestidas com trapos sujos? Não lhes passava pela cabeça que elas também se tornariam criaturas em farrapos. E assim se repetiam as tragédias. Tentando poupar seus filhos de trabalhos pesados, mentiam sobre as idades das crianças e, involuntariamente, as mandavam para as câmaras de gás. (Pág. 109)
A visão desses mortos nos encheu de sentimentos dúbios. Sentíamos muito por eles, pois as mortes eram realmente horríveis, mas também os invejávamos. Eles tiveram a coragem de abandonar uma vida que não merecia ser vivida. (Pág. 132)
A propósito, os prisioneiros no campo eram principalmente gentios, em vez de judeus, como muitos leitores ocidentais podem imaginar. A população de Auschwitz era formada quase que por 80% de gentios. O motivo não era segredo para ninguém. A maioria dos judeus era mandada imediatamente para as câmaras de gás e os fornos crematórios. (Pág. 135)
O procedimento era bizarro. Esticavam uma corda até certa altura. Todos que estivessem abaixo dessa medida eram automaticamente encaminhados às câmaras de gás. De cada cem crianças, apenas cinco ou seis sobreviviam. (Pág. 138)
Conversei com um menino de 12 anos do campo tcheco que estava andando junto ao arame farpado à procura de algo para comer. Depois de falar com ele por alguns minutos, eu lhe disse: "Karli, sabia que você é muito inteligente?". "Sim", ele respondeu. "Sei que sou muito inteligente, mas sei que nunca terei a chance de ser mais inteligente. Isso que é trágico." (Pág. 139)
Que crime os ciganos haviam cometido? Eram uma minoria, e isso era o suficiente para condená-los à morte. (Pág. 141)
"Ontem encontrei um tubo de pasta de dente. Vamos comer isso. [...] Então, aquelas que dormiam junto se espremeram num canto da koia e espalharam pasta de dente no pão. Soa louco para você? Nós, prisioneiras de Auschwitz, raramente tivemos uma refeição melhor que aquela desfrutada naquela noite. (Pág. 169)
Nós iríamos morrer, de qualquer forma, não importava o que acontecesse. Seríamos envenenados com gás, cremados, enforcados ou baleados. Os membros da Resistência pelo menos sabiam que, se moressem, morreriam lutando por algo. (Pág. 191)