Vania.Cristina 27/09/2023
Entre a natureza hostil e a sociedade opressora
Estava devendo essa resenha... A história é aparentemente simples, mas tem enorme profundidade. A narrativa é fluída e sofisticada. Cada capítulo pode ser lido de uma forma independente (embora juntos tenham linearidade), o narrador é onisciente e a perspectiva muda de um personagem para outro, às vezes dentro de um mesmo capítulo. São poucos personagens e eles são universais, podem ser compreendidos em outros contextos, em outras partes do mundo, por isso alguns nem nome tem. É a história de uma família de migrantes nordestinos, sem posses, que vaga pelo sertão e às vezes se abriga trabalhando para outros. Na maior parte do tempo estão sobrevivendo, enfrentando uma natureza hostil ao extremo e uma sociedade que oprime, explora e ignora. Um ponto importante na obra é que os personagens não tem estudo, são analfabetos, e por isso estão mais indefesos. Sem o entendimento do significado das palavras não entendem o mundo, não conseguem se comunicar, e as coisas sem nome tornam-se misteriosas e intimidadoras. O casal de protagonistas se entende nos gestos, no silêncio e no companheirismo que um encontra no outro. O pai, Fabiano, sofre porque se vê menor, ignorante e sem perspectivas. Já seus filhos se sentem injustiçados mas curiosos em compreender o mundo e seus mistérios. As palavras às vezes assombram, outras encantam. Quem melhor se comunica na história é a cachorrinha Baleia. Cuidadora, afetuosa, inteligente, expressiva, proativa, é considerada parte importante da família. Dessa forma, os protagonistas humanos são animalizados, enquanto Baleia é humanizada. Fabiano é ruivo, não se identifica com os negros escravos, porque eles "pelo menos" podem ser "alforriados", mas também não se identifica como branco, porque essa é a cor de quem está no poder. Brancos são os donos do comércio, o patrão, os funcionários da prefeitura, a polícia, o soldado... Todos os que oprimem. O livro me remeteu a outros dois, um clássico e um contemporâneo: O Velho e o Mar, de Hemingway, onde a natureza é admirável mas também violenta e assustadora, enquanto que a sociedade abandona e ignora. E A Cachorra, de Pilar Quintana, onde a natureza é hostil, violenta, incompreensível, e a sociedade cobra da mulher o que ela não pode dar, e oprime, julga, abandona.