Josy Snec 19/11/2022
Uma leitura extremamente necessária
Ray era "um homem pobre num sistema de justiça criminal que te trata melhor se você é rico e culpado do que se for pobre e inocente". Um homem negro em um período sombrio.
Se hoje, mesmo aqui no Brasil, um país tão miscigenado, os negros, só por serem negros sofrem humilhações, agressões e repressões, são perseguidos por seguranças em lojas, parados sem motivo pela polícia entre outras situações, imagina como era essa opressão logo após a Lei dos Direitos Civis nos EUA, quando os negros puderam legalmente viver entre os brancos que não aceitaram bem a mudança. É isso que a história de vida desse homem nos conta da forma mais crua, desconfortável e necessária que poderia ser contada.
Anthony Ray Hinton era um bom filho, um bom homem, um tanto mulherengo, é verdade, mas uma pessoa honesta, uma pessoa que sim, cometeu erros mas pagou por eles, uma pessoa claramente incapaz de ferir.
Quando ouvimos afirmações do tipo "todos os negros são parecidos" ou que "não dá pra diferenciar os asiáticos", embora saibamos desde que sempre que são afirmações racistas e irreais, nunca mais as ouviremos da mesma maneira depois de saber que quando uma pessoa branca não foi capaz ou sequer se interessou em ao menos tentar diferenciar alguns homens negros, ela quase levou uma pessoa inocente à execução.
O desconforto na leitura provém de diversas situações, entre elas ressalto:
1 - A impotência em não poder fazer nada para mudar o que houve com Ray, não poder fazer nada, ao menos não sozinha, para evitar que aconteça com outras pessoas, saber que sim, isso continua acontecendo seja com a pena de morte ou sem ela, vidas inocentes estão sendo destruídas lá e aqui por uma sociedade racista e um sistema incompetente e desigual.
2 - A consciência de meus próprios privilégios, desde viver na época em que vivo onde as pessoas, da maneira geral, são mais conscientes e empáticas, passando pela minha excelente estrutura familiar que, apesar de não vir acompanhada de uma excelente condição financeira, foi o suficiente para me promover uma boa educação, chegando claro até o próprio privilégio branco que, embora não o tenha se for aos EUA, o tenho bem aqui no Brasil e em enorme proporção.
Ray cita algo que me pegou intimamente: "... não podemos ter certeza da culpa, a não ser quando há a admissão de culpa. Uma pessoa podia acreditar na pena de morte e ainda assim acreditar também que é preciso acabar com ela, porque os homens são falíveis e o sistema de justiça é falível".
Fui vítima de um crime que não quero mencionar, mas credito que o mundo seria melhor sem que andasse sobre ele as duas aberrações que fizeram comigo o que fizeram, acredito que mereçam a morte, eu acredito que pessoas que cometem crimes hediondos deveriam ser expurgadas da face da Terra mas, ainda assim, nunca fui à favor da pena de morte, por mais que acreditasse que certas pessoas merecem morrer nunca acreditei que o homem fosse capaz de julga-las com plena certeza culpadas ou inocentes e, depois de tudo que passei, eu não entendia como ainda poderia ser contra a pena capital, não entendia como eu poderia ser tão contraditória com minhas próprias convicções, me sentia uma grande idiota, mas Ray me ajudou a entender, pois "o trágico número de pessoas inocentes equivocadamente condenadas, as muitas condenações ilegais, o tratamento desigual dos pobres e das minorias raciais tornaram a pena capital não mais uma questão de se algumas pessoas merecem morrer pelos crimes que cometeram, em vez disso, a questão da pena de morte [...] é se o governo estadual, com seu sistema político de justiça falho, inexato, tendencioso e povoado de erros merece matar. É hora de reconhecer que não merece.", entendo que sempre estive do lado certo e o motivo e por isso lhe sou grata.
Ray foi capaz de algo que eu ainda não fui: perdoar aqueles que lhe destruíram a vida. Mas me deu um motivo pra não desistir de tentar: "Se eu não fosse capaz de perdoar, se não fosse capaz de me sentir feliz, seria como dar a eles o restante da minha vida."
As cicatrizes deixadas por nossas experiências são incomodas, elas doem e a dor reflete em como vivemos. No caso de Ray, suas cicatrizes o obrigam a viver sempre em alerta, criando álibis, documentando cada dia, recolhendo recibos nas lojas, mantendo contato com conhecidos todos os dias, caminhando propositalmente onde há câmeras de segurança que poderão fornecer à polícia informações precisas de onde ele estava e quando, ele vive com medo.
Embora o sol ainda brilhe, Ray nunca mais pôde relaxar sob ele.
Termino com a frase mais marcante do livro: Morte nunca deteve morte.