Vanessa602 08/03/2021Bom, se ninguém vai endereçar o elefante na sala, eu faço. O que. foi. esse. livro? Passei muito tempo debatendo comigo mesma se faria essa resenha, até porque não encontrei nenhuma outra mencionando os problemas da obra, então percebi que o único motivo de eu ter comprado Feitos de Sol é porque infelizmente não encontrei nenhuma resenha mencionando os problemas da obra. Então, vamos fazer isso, mesmo que me doa imensamente criticar algo tão unanimemente adorado, e que pertence a um autor que parece ser super gente boa.
Primeiro, parabéns aos revisores e leitores de prova, o texto não tem um errinho. Agora, não sei se posso dizer o mesmo sobre os leitores críticos e editores… O livro tem gafes que me fazem crer que nenhum crítico profissional sequer passou os olhos na história. Na verdade, penso até que a única pessoa que leu foi o próprio autor, talvez nem isso. Meu primeiro pensamento foi: ah, talvez essa seja uma obra antiga, o livro que lançou o nome dele no mercado. Me equivoquei. Aparentemente, esse foi o último livro publicado! Eu imaginaria que depois de anos escrevendo, o próprio autor seria capaz de evitar e fugir de algumas questões básicas contidas nesse texto. Me equivoquei novamente.
Vamos a uma lista, porque eu amo listas.
* A carta ao leitor na primeira página. O raison d'être do livro. Confesso, aqui é opinião pessoal. Para mim, a única carta ao leitor válida e efetiva é o próprio conteúdo da sua história. Se você sente a necessidade de conduzir e preparar o leitor para a mensagem e lição que pretende passar com a narrativa, provavelmente sua mensagem e lição contém problemas que causaram essa insegurança. Enfim, acho estranho e cria uma conexão autor-leitor que me parece inadequada e íntima demais.
* Descrições abstratas e tão melodramáticas que eu reflito: nem beta de fanfic deixaria isso passar, e algum profissional realmente leu coisas como: “coração contente”, “alma tranquila”, “a liberdade explodiu dentro de mim”, “...meu corpo se espalhar como fogos de artifício” e outras dezenas de expressões que eu veria se estivesse lendo o diário de uma menina de doze anos. Mas em um autor profissional? Espero escrita de qualidade, figuras de linguagem equilibradas e prosa específica. Caso contrário, a vontade de ser poético acaba virando melodrama amador.
* Protagonista descreve a si mesmo olhando no espelho DUAS vezes no começo do livro. Se você decidiu escrever em primeira pessoa, tem que decidir também largar da preguiça pra descrever a aparência do seu MC (personagem principal). Ah, e também faça isso com o resto do cast, porque até agora tudo que sei sobre a aparência do interesse romântico é que ele tem cabelos e olhos castanhos... como 80% das pessoas ao meu redor também. Vicente tem tanta personalidade única quanto detalhes físicos únicos, ou seja, zero.
* Exposição, exposição e mais exposição. Tanta exposição em tantos níveis que eu quase surtei lendo coisas como: “meus pais são muito rígidos”, “você é aéreo, está sempre no mundo da lua”, “é como se você vivesse em uma realidade alternativa dentro da própria cabeça”, “gosto de cinema e desenhar”, “metido e teimoso”, “debochado, irônico e paranoico, o que faz com que eu me identifique”, minha família é controladora”, “minha vida é um inferno” enfm, se eu começar a explicar os problemas e as consequências de descrições dessas na história essa resenha vai virar uma bíblia e eu vou ter que cobrar por estar fazendo o trabalho dos profissionais que fizeram leitura dinâmica nessa obra. Mas não tem nada nesse mundo que vai me fazer acreditar que o protagonista é um artista se tudo que me foi dito é: o protagonista é um artista. Me MOSTRA sua coleção de materiais, seu dedo calejado naquele ponto onde o lápis encaixa, me mostra ele tão aéreo que se machuca por não prestar atenção nos arredores, me mostra pais tão rígidos que o personagem não conhece coisas famosas por causa dessa restrição.
* Personalidade do MC. Imagina a coisa mais genérica e rasa possível… imaginou? Não importa o que era, você acertou! Sabe aquele momento em que você lê uma frase, um pensamento, uma fala, uma ação de certo personagem e pensa: “eu reconheceria o dono dessa caracterização de longe”? Pois é, não existe aqui. O MC é o típico personagem de YA: gosta de coisas geek, se acha esquisito quando é super normal e seu maior traço definidor é o fato de ele ser adolescente. Só isso, Acabou. Ele não tem manias, nem medos, nem sonhos, nem opiniões, nada que o torne único e palpável. Ele é só… o protagonista.
* Quando decidir escrever em primeira pessoa no passado, tenha cuidado extra pois o presente E o passado estarão escritos no passado. Ou seja, se você insere uma história no meio do enredo presente e falha em definir os limites dela, isso vai confundir o leitor.
* Essa é importante e eu nunca vou cansar de repetir: INTROVERSÃO NÃO É UM DEFEITO QUE PRECISA SER SUPERADO. Ah, isso eu vejo de monte e me enfurece toda vez. O que acontece é que a história apresenta esses dois personagens: o com características extrovertidas e o com características introvertidas. Geralmente, o interesse romântico é o primeiro caso e o MC é o segundo. Então, o arco do MC só é positivo e inspirador quando ele se torna mais parecido com seu par romântico e menos parecido com si mesmo, essa é a única forma de sua melhor versão. Ele começa a “se libertar”, “descobrir o mundo”, “conhecer coisas novas”, “viver!”, mas deixa eu contar uma coisa, senhores autores de YA: se o personagem não está satisfeito sendo introvertido, ele NÃO é introvertido. Talvez tenha fobia social, seja tímido ou algo assim, mas vamos parar de demonizar comportamentos que simplesmente não expressam sentimentos e emoções do jeito que é comumente visto. Só porque você não vê a felicidade nas atividades de um introvertido, não quer dizer que ela não está lá.
* Os diálogos são a coisa mais infantil e desprovida de tensão que eu já li. Não é uma troca, uma interação, é uma conversa boba que vai e vem e que não tem significado, importância e não revela nada sobre nada. Tem uma cena em que Vicente e Cícero passam linhas de fala discutindo sobre quem é o melhor protagonista de Toy Story. E é só isso. Até meus sobrinhos tem interações mais interessantes que aquilo.
* O romance. Se você gosta de ver uma evolução de intimidade, uma progressão no relacionamento, um slow burn, um primeiro encontro de tirar o fôlego, aquela satisfação de ver os pombinhos tendo suas primeiras e tão aguardadas vezes um com o outro lá no final, depois de muito lutar… passa longe. Só não chamo de insta love porque nem love tem aqui. Os mocinhos mal se conhecem, não sabem nada um sobre o outro, não tem interações memoráveis e, mesmo assim, já estão sentindo um fogo queimando no fundo da alma ou algo clichê assim. Se eles não são interessantes nem separados, juntos também são qualquer coisa.
* Relacionado ao problema anterior: todos os personagens nesse livro são uma coisa só. Eles usam o mesmo vocabulário mesmo tendo criações e idades diferentes, têm os mesmos padrões de fala e vícios de linguagem informal (alguns irritantes e repetitivos, como ter que ler pô, fala sério, não brinca, cara, se liga, bicho, não viaja, ué a cada cinco segundos vindo de TODOS os personagens da história), usam as mesmas gírias e, aqueles que não são os “vilões” pensam da mesma forma sobre assuntos polêmicos. Não existe progressismo perfeito nem em 2021, mas coincidentemente todo mundo no livro em 1999 vivia a frente de seu tempo. Não sei vocês, mas ler sobre esse mundo ideal me causa uma satisfação que dura apenas o tempo que demora até eu perceber que é apenas isso: ideal.
* Uma romantização nojenta de hábitos destrutivos em menores de idade. “Uhh, fulaninho fuma e bebe, ele é tão deslocado e rebelde”. Ah, sem paciência, parça. Vou até colocar aqui algumas passagens originais: “o bom do álcool é que quando ele entra no nosso corpo, a verdade vai saindo”, “eu não fumava, não bebia, mas precisava de um cigarro, precisava de álcool, alguma coisa para me acalmar”, “então era isso que os adultos chamavam de ressaca?” Lembrando que o MC tem 15 anos e há um total de cinco personagens nesse livro que acende um cigarro e dá um gole toda vez que se sente mal. O autor não é obrigado a fazer deles bons exemplos, mas, ao mesmo tempo, ele é responsável pelas palavras que escreve e as influências que elas têm nas pessoas que as leem. Portanto, já que não houve a menor problematização e crítica a esses vícios, digo eu: caro adolescente, sua vida não começa apenas depois do seu primeiro porre e tragada, isso não é ser adulto e muito menos ser legal, é idiota.
* A piada chamada “página 113”. Foi nessa página que eu percebi: Feitos de Sol não é uma história que passa uma mensagem através da jornada de seus personagens, é uma mensagem disfarçada de história, uma lição de moral ensinada através de palestras, discursos e monólogos. Ficou ainda mais claro, a partir daquele ponto, que o autor jogou a sutileza pela janela e decidiu conversar diretamente com o leitor. Vinícius Grossos pegou na nossa mão e disse: não seja intolerante. Por ex em: “Não há violência mais cruel e devastadora do que aquela que a gente causa contra nós mesmos quando não nos aceitamos e não queremos enfrentar os nossos problemas. O jeito mais fácil de destruir a si próprio é lutar contra quem você é!” Belas palavras, não vou negar… mas para um livro de autoajuda, e não de ficção! A impressão que tive é que esse livro é apenas um diário do autor e o protagonista dele é o self insert de seu autor, que diz as palavras que este queria ter escutado. No final, eu sei que todas as obras são diários de seus autores em algum nível, mas apenas um bom autor para não deixar isso transparecer aos leitores; coisa que não acontece aqui.
* Um monte de cenas desnecessárias. Por exemplo, a página 132 é completamente dispensável; uma personagem secundária contando a história de quando foi no Rock in Rio pela primeira vez. Só isso. Eu não me surpreenderia se descobrisse que essa cena só foi mantida porque o autor quis contar sua própria experiência no Rock in Rio, ou de alguém próximo a ele. Se você pular ela, não perdeu nada; e esse é o tipo de coisa que um bom editor e leitor crítico vai saber apontar. Mais tarde ainda temos uma série de diálogos com o único propósito de prever a futura existência de Crepúsculo, Cinquenta Tons de Cinza, a paz mundial e a liberdade de expressão. O que só deixa ainda mais claro a inexperiência do autor em escrever uma história que se passa no passado sem se deixar levar por suas próprias influências modernas, que, por sua vez, não deveriam moldar a visão de mundo de seus personagens… já que essa visão ainda não foi propagada. Falando nisso…
* As pessoas na vida real raramente falam a coisa certa no momento certo. Porém, quando os personagens parecem sempre ter as palavras perfeitas na ponta da língua, aquelas que mais ajudam o protagonista e avançam a trama, sou lembrada de que isso só é possível porque NÃO É REAL. Quando um personagem ouve exatamente aquilo que precisa para superar um medo, quando são essas as palavras mágicas que o libertam, eu me sinto desconectada porque nem um terapeuta, nem deus, nem nossos pais tem essas palavras! Alguns autores precisam entender que tornar os aliados do protagonista em humanos perfeitos e 100% bem resolvidos só porque eles precisam ajudar o protagonista, simplesmente oblitera a humanidade deles próprios. Até as pessoas que já dominam exatamente aquilo que estamos aprendendo não são obrigadas a nos ensinar nada e tem seus próprios problemas para resolver, e é sobre esses personagens que eu quero ler.
* Referências intermináveis a sol, brilhar, iluminar, etc. No final do livro eu já queria arrancar os olhos toda vez que lia uma comparação ou metáfora envolvendo o calor do sol. Isso sem falar das referências a cultura pop da época... acho que já chega desse pornô de nostalgia, né?
Resumindo, o livro é um amontado de melodrama adolescente bobo e exagerado, com um monte de pirralho declarando juras de amor dias após se conhecer e dizendo que não sobreviveriam um sem o outro. A prosa não consegue ser precisa e desprovida de figuras de linguagem abstratas e sentimentais nem um único minuto, e a qualidade geral da obra tem aspecto de principiante que, das duas uma, ou não tem bons amigos para lhe avisar com antecedência ou tem bons amigos em posição de autoridade na criação do livro, porque só isso explica o fato de todos esses problemas terem passado por uma equipe de profissionais. De qualquer forma, Feitos de Sol não parece o quinto livro de um autor profissional, e sim o primeiro de um inexperiente.