spoiler visualizarAle 17/02/2018
Da perversidade a Dupin
O livro traz alguns contos interessantíssimos dos quais irei comentar apenas superficialmente. Gostaria de chamar a atenção para um conceito desenvolvido pelo autor e empregado em dois contos do livro, quais sejam, "o gato preto" e "o demônio da perversidade", que consiste na propensão ou tendência que temos em destruir o que é nosso, ou nos pôr em situações desvantajosas e indesejadas pelo simples fato dessa possibilidade existir e estar em contramão com a razão. Não trata-se de prazer pela dor, mas a dor pela dor. Uma propensão tal que não encontra qualquer correspondência na razão, mas que é intensificada quanto maior é a intensidade que a razão nos indica o caminho contrário. Dois exemplos dados pelo autor: um homem que se vê diante de um precipício terá em sua razão a indicação de se afastar daquela situação, e para tanto ela dá diversos argumentos razoáveis, como "é perigoso estar muito perto", "a queda provavelmente causará a morte", "é possível escorregar ou sentir tontura e cair" etc. Conforme essas proposições são formuladas, uma segunda tendência, sem qualquer razão*, aparece e convida o homem a pular. É uma vontade, uma tendencia ou propensão que não causará qualquer benefício ao homem e nem mesmo prazer, mas é estranhamente convincente, a ponto, segundo o autor, que se o homem considerar a ideia, estará condenado. O segundo exemplo: um homem que pratica um crime perfeito e sem suspeitas goza dos muitos bens materiais que adquiriu com o crime. A razão aponta para o silêncio, para que ele fique exatamente onde está, aproveitando os espólios do ilícito, pois não há nada que possam fazer para que o descubram como assassino. Pois essa propensão, a qual o autor chamou de "perversidade", apontará na direção contrária: a confissão. Não há narcisismo, no sentido de que ele gostaria de que o procurassem e descobrissem o que fez, com a magistral perfeição, mas a pura desvantagem. Ele receberá a pena de morte e ele sabe disso. Ele considera a ideia de confessar. Está perdido. Confessa e sofre a pena, como podemos deduzir.
É possível vê-la no "gato preto", afinal o assassino só precisava esperar que os policiais fossem embora de sua casa ao final da vistoria, mas algo, uma vontade acometeu-lhe e ele precisou bater na parede onde havia enterrado sua mulher, colocando tudo a perder. É verdade que nesse caso havia uma certa dose de narcisismo, algo como "olhe, estava na sua cara!", mas acho que cabe muito bem que ele poderia ter zombado deles de uma outra forma, uma mais segura. Ter ele escolhido essa em particular me parece revelar um tom de "perversidade", como definido pelo autor (tendência de autodestruição).
Bem, de uma a outras chegamos em Dupin, o grande pai dos detetives modernos. Para um leitor de Poirot e Sherlock fica muito evidente a receita que seguiram, passada pelo autor desta obra. Um homem dito observador, perspicaz e analítico. Alguém puramente lógico, seguidor de um sistema metódico, que se diverte com as deduções decorrentes de suas conexões de ideias. Uma ideia leva a outra, que leva a seguinte e que desemboca, inevitavelmente, na provável verdade. Eis o método. Além disso, o homem deve ser um tanto reservado quanto a ele, revelando-o pouco a pouco, até que no final revele tudo de uma vez. Ele primeiro pergunta para quem está ao seu lado (seja Watson ou outro) e a partir da resposta (que costuma ser simples se comparada com a dele próprio) vai desenrolando o resultado da conexão de ideias que realizou mentalmente. Costuma dizer que o inexplicável reside na simplicidade, quando, segundo o que penso, pode ser um resultado de falsa modéstia ou mesmo arrogância. O resultado não pode, verdadeiramente, ser visto pelo leitor, porque há várias informações cruciais que são omitidas, mas bem silenciosamente, como um cheiro, um formato de um objeto etc. A narrativa é construída de forma a nos fazer esperar pelo veredicto do detetive, além de talvez nos inspirar a fazer o mesmo, apesar de quase sempre sem sucesso, pelo motivo exposto. Os elementos são postos a nos fazer sentir a sensação de termos algo esquecido na ponta da língua, mas não saber o que é. O detetive seria aquele a nos lembrar. Uma pergunta seria: por que gostamos de sujeitos assim? acredito que uma resposta interessante seria: porque ele é um sujeito que vê além daquilo que é mostrado. Ao ver um objeto, não vê apenas as suas formas externas, mas tudo aquilo que esta oculto, obscuro. Acredito que ocorra o mesmo com a psicanálise: gostamos porque mostra que nós, visíveis a qualquer olhos, não nos explicamos pelo externo, mas pelo que esta oculto, pelo inconsciente. O mesmo com Marx, que dizia que a sociedade não se explica por aquilo que vemos, que ele chamaria de superestrutura, mas por aquilo que não vemos, a infraestrutura. E assim por diante. Parece que gostamos daquilo que está por trás das coisas. Talvez para guardarmos como um tesouro...