Biblioteca Intempestiva 07/09/2020
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. 3°ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
O narrador principal das centenas de fragmentos que compõem este livro é o "semi-heteronômio" Bernardo Soares.
Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, ele descreve sem fio narrativo claro e sem uma noção de tempo definida ou determinável. Daí que tenhamos, uma autobiografia escrita.
Os temas não deixam de ser adequados a um diário íntimo: a elucidação de estados psíquicos, a descrição das coisas através dos efeitos que elas exercem sobre a mente, as reflexões sobre a paixão, a moral, o conhecimento.
Uma maneira de domesticar esta obra é encará- la como um romance - aliás, o único de Fernando Pessoa.
Contudo, o desassossego que nada pulsa reage dentro dessa jaula conceitual, obrigando-nos a reconhecer que se trata, na verdade, de um antirromance.
O livro é antes uma coleção de estilhaços que sugerem apreensões fortuitas, devaneios, fulgurações, sondagem de repetimos enigmas, confissões privadas etc.
Tais insights destacáveis transbordam, verossímeis, ora da observação estática de Soares, ora da 'flânerie' metódica que o narrador empreende pela Baixa lisboeta, ao mesmo tempo em que mapeiam uma outra deambulação - por trilhas quase inapreensíveis da percepção mental.
Fiéis ao espírito desalinhavado com que se doaram à posterioridade, esses fragmentos (produzidos entre 1913 e 1935) recusam, a costura tradicional dos livros, impondo-se como cartas avulsas e embaralhadas, prontas a ganhar qualquer feição caleidoscópica.
Mas, ainda que percorridos a esmo, os retalhos dessa obra expõe sempre um Bernardo Soares apegado a sua dupla condição: plácido escrevente do livro de contabilidade e escritor atormentado de uma existência solitária e sem brilho, para quem a única comunicação tolerável ocorre por meio da escrita.
Nesse movimento de vertigem em torno do vácuo, do nada, privilégio psicológico e artístico, ao redor de um eixo que não há, Pessoa converte-se em personagens de seus próprios dramas.
Nesta edição, o pesquisador Richard Zenith estabelece nova ordem e acrescenta trechos recentemente descobertos.