@garotadeleituras 20/02/2016
Confie, mas confira.
Ambientado na Rússia soviética de 1953, período stalinista (comunista), criança 44 nos transporta para uma sociedade impregnada por conceitos de lealdade ao estado acima de qualquer outra regra social. Consequentemente somos apresentados às condições sociais desumanas, miseráveis e cruéis do comunismo.
Liev Deminov é um agente do MGB, polícia secreta do estado. Acredita na justiça e na supremacia do sistema político.
“- o amor em si era uma lição política. Não havia amor mais importante do que o Amor do Líder e, portanto, o Amor de todos pelo Líder”.
Para Liev, os meios justificam os fins, ou seja, todas as atitudes empregadas com a finalidade de ordem e justiça eram justificadas em prol de melhorias na sociedade. A verdade circulante na realidade comunista na qual Liev contribuía ativamente, pregava a igualdade dos direitos, o controle sobre a violência, o bem estar coletivo com suprimentos necessários a sobrevivência e o retrato de país feliz. Se acidentes aconteciam, logo os culpados eram punidos, os motivos esclarecidos, já que a paz era um elemento supremo no cotidiano. O ânimo opressor impedia pessoas de discordarem e reivindicar, restringindo a liberdade de expressão. A agressão física e psicológica era uma prática recorrente.
Fiódor acredita que seu filho foi assassinado na linha do trem. Buscando a ordem, Liev é encarregado de resolver o caso e silenciar a família enlutada; para tanto, provando que na verdade o que aconteceu foi um acidente e não um crime. Num primeiro momento, o agente está mais focado em um caso de um fugitivo, mas compreende alguns aspectos que não estão respondidos satisfatoriamente e começa a florescer as primeiras dúvidas sobre a eficiência e justiça do sistema, pois outros casos semelhantes são encontrados em outros pontos do país ao longo da via ferroviária: Crianças com o aparelho digestivo ausente, cascas de árvores na boca e um nó de corda em um dos tornozelos. Arkadi era mais uma criança no somatório, a de número 44; havia um assassino responsável e era necessário encontrá-lo.
“- Nas últimas horas, Liev só pensava no corpo do menino na neve. Teve pesadelos com um menino na floresta, nu, sem entranhas, perguntando por que todos o abandonaram”.
No decorrer da narrativa, outros personagens vão compondo a arquitetada trama, como Raíssa, professora e esposa de Liev. Não confia ou respeita a sociedade. Sentiu na própria pele o poder demolidor. Vitima do meio cruel, frio, com uma falsa encenação de justiça e umas poucas regalias para quem tem um cargo superior (minoria), já que a grande maioria é marginalizada pelas condições precárias, adota a filofia de adequação ao meio para subsistir. Seu casamento é fruto dessa adaptação, isento de qualquer sentimentalismo e comunicação bilateral. Vassíli, companheiro de trabalho de Liev, alimentava um sentimento de perseguição paranóico contra o agente. Era um ser insensivelmente cruel, implacável em perseguir e destruir seus inimigos, um estereótipo digno do comunismo.
Durante a narrativa, Liev antes crédulo e defensor, contribuinte da ordem e progresso russo, acaba passando por uma série de perseguições, sendo colocado inclusive para investigar e denunciar sua esposa por espionagem. Devido a uma série de acontecimentos, os papeis são invertidos: passou do prestigiado mundo do crime político para a secreta sujeira do crime comum. Ele percebeu que a maioria dos culpados eram inocentes destroçados nas engrenagens de uma máquina de Estado que era importante e vital, mas não infalível.
“- Liev viu que era um gracejo sobre o conhecido aforismo criado por Stalin: Confie, mas confira. As palavras de Stalin tinham sido interpretadas como: desconfiar de quem confiamos”.
Antes, perseguidor, Liev agora é perigoso e oferece riscos. Fugindo e tentando desvendar o mistério do assassino que mata crianças com uma metodologia doentia, ele mergulhará em suspense paralelo, capaz de transportá-lo ao passado e ampliar a visão do presente. Ele descobre que assassinatos não é uma doença capitalista e que a busca por respostas tem seu preço.
Se o livro superou minhas expectativas? Com certeza, sem dúvidas! Confesso que o inicio é meio confuso, há um pulo na cronologia de 20 anos, mas que o autor consegue inserir posteriormente de forma magnífica. O desenrolar dos fatos, o desenvolvimento do relacionamento dos sentimentos de Liev, a busca incansável pela solução do crime e a apresentação da realidade sistemática e a doutrinação comunista é um conjunto dinâmico nesse primeiro livro de Tom Rob Smith. Fazia algum tempo que o livro estava na interminável lista de leitura. Acabou pulando devido aos desafios literários que exigia a leitura de um livro com números na capa. Na verdade, o livro é fundamentado em fatos reais de um serial killer na antiga URSS. Ao término da leitura é possível ver que o autor fundamentou os fatos e costumes na literatura, buscando dessa forma, oferecer ao leitor um livro rico em detalhes do período.
O desfecho da estória é maravilhoso, não deixando nenhum fato solto. Fiquei com vontade de ler os dois volumes seguintes e acompanhar nosso agente justiceiro na sua luta revolucionária. Ah, tem o filme também e parece ser bem produzido assim como o livro.
“- Há tanta coisa para se ter medo. Você não pode ser uma delas”.