liaentrelivros 07/05/2024No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em riscoEu quis reler algumas partes dessa obra antes de fazer a resenha, pois, durante a leitura estava passando por uma semana de caos na faculdade. Chorei tudo o que eu não tive tempo de chorar antes.
"Na primeira vez que ouviu falar em consciência negra, você não compreendia que a sociedade se importava mais com a sua cor do que com o seu caráter."
Pedro começa a história no dia em que precisou ir até o apartamento de seu pai recém-falecido, e entre objetos e lembranças nos narra a trajetória de seus pais - Henrique e Martha - na cidade de Porto Alegre. Os capítulos são narrados entre a infância e adolescência de um e de outro, o encontro e a separação de duas pessoas marcadas por um cotidiano reduzido a esteriótipos e regras de convivência de uma sociedade racista.
"Quando pela primeira vez você ouviu a palavra 'negritude', o seu entendimento sobre a vida tomou outra dimensão, e você se deu conta de que ser negro era mais grave do que imaginava."
Formado em Letras, Henrique dedicou a vida ao magistério, outra luta árdua contra a escola e o desinteresse dos alunos pelos livros. Desencantado com a profissão, foi aos poucos se tornando apenas um operário, até começar a lecionar Português para uma turma noturna do EJA e se deparar com sobreviventes de um sistema que corrobora para que os jovens da periferia abandonem os estudos. E em uma aula sobre Crime e Castigo ele finalmente consegue a atenção desses alunos. Uma chama de esperança se acende, tão forte, tão intensa, que ele nem percebe, a caminho da escola, quando os policiais fazem a abordagem pela milionésima e última vez.
"Quando você morre, quando seu coração para, não importa o que você fez com sua vida, não importa quantos planos você deixou para trás, quantas pessoas você magoou, quantas te magoaram, quantas vezes você perdeu ou ganhou. Importa apenas o que você estava fazendo no momento da sua morte."
Pedro termina sua história contando a relação que tinha com os pais separados: de um lado, a mãe controladora, que descontava nele a insegurança do abandono de um casamento falido, e do outro lado, o pai pouco afetuoso de quem ele tentava se aproximar e ganhar a mesma importância que seus livros. É aí que está o avesso da pele, o que você significa para os outros, o que você carrega dentro de si e o que a sociedade não pode tocar. O abismo de viver confinado aos limites do que lhe é permitido de acordo com o seu tom de pele.
Não é à toa tanta polêmica em torno de O Avesso da Pele, não é preciso ter lido para saber o que constrange de verdade os falsos moralistas. É mais fácil censurar um livro do que chamar os jovens à discussão sobre assuntos tão pertinentes do nosso cotidiano. O incômodo de ler sobre cenas de sexo deveria ser menor do que se reconhecer em falas e atitudes racistas, mesmo quando despretenciosas. É saber que fazer parte do coro "bandido bom é bandido morto", muitas vezes é concordar com a violência policial cada vez mais normalizada nas estatísticas. É apagar sonhos de quem tenta fazer a diferença na vida das pessoas, seja através da educação, seja através da arte. É se conformar com a dor de quem perdeu um familiar por um erro, mas que precisa continuar, porque é vida que segue.
"Tenho Ogum em minhas mãos porque agora é a minha vez."