Evy 20/12/2021Escrevendo para o povo!"
Eu disse 'Vinícius (de Morais), não escrevi para você! Para você, escrevi outras coisas!' Eu tinha a impressão de que estava escrevendo aquele poema para o povo. Quase me danei...", foi a fala de João Cabral de Melo Neto em entrevista dada a Geneton Moraes Neto em 1986. Já são mais de 60 anos desde a primeira publicação de Morte e Vida Severina e continua sendo a obra mais famosa do autor, com mais de cem edições e adaptações que vão desde a televisão, teatro, cinema e até quadrinhos.
João Cabral de Melo Neto foi um poeta e diplomata brasileiro e tornou-se imortal da Academia Brasileira de Letras, suas obras literárias, sendo Morte e Vida Severina a mais famosa delas, falam em sua grande maioria sobre a própria criação literária e trazem muita influência da cultura popular. Seus poemas também contêm imagens surrealistas e o autor primava pela rigidez formal com versos rimados e cheios de ritmo.
Recebeu vários prêmios, incluindo o Prêmio da Poesia do Instituto Nacional do Livro, o Prêmio Jabuti da Academia Brasileira do Livro e o Prêmio da União Brasileira de Escritores pelo livro Crime na Calle Relator. Mas o autor se ressentia do sucesso estrondoso de Morte e Vida Severina, quando conclui, na entrevista citada acima que seu romance não seria coisa tão popular quanto os romances do Nordeste, os romances de cordel, e sim de intelectuais.
Sua literatura transita entre a Casa Grande, onde formou-se sua escrita culta, e a voz da Senzala, que lhe trouxe o cordel, o popular e o gosto pela narrativa e pela representação do que podia alcançar com os olhos. Em Morte e Vida Severina, vai nos apresentar um Severino, que é um e tantos ao mesmo tempo, com o mesmo nome e o mesmo destino trágico:
"
E se somos Severinos
Iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia".
Severino está percorrendo o sertão em busca de um trabalho, uma vida melhor. Durante o seu caminho até o Recife é acompanhado pela presença constante da morte e pelo cenário agreste desolador de chão duro e seco. Não há trabalho nessa região para quem cuida da terra e todo trabalho leva à morte certa.
"
Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar".
Conforme ele vai se aproximando do litoral, o chão vai ficando mais mole e ele encontra um pouco mais de fartura, porém a paisagem ainda é seca de gente. Severino acredita ter achado finalmente um lugar onde a morte abranda e acha que o motivo é a terra muito fértil onde não há necessidade de trabalhar tanto. Mas o que se segue é a narração do funeral de um trabalhador exausto e explorado, num cemitério que só é pequeno porque as covas são rasas e estreitas.
Quando finalmente alcança a capital, o que acha que será sua redenção, encontra a morte em outro cenário: já não é mais a seca que leva as pobres almas severinas, mas a água: o mangue. Fugindo da seca, continuam marginalizados em meio à água. Severino no final de seu caminho — sua penitência — continua encontrando somente a morte.
No entanto, quando está pensando em acabar logo com essa vida de sofrimento, única saída que encontra, é abordado por outro severino anunciando o nascimento de seu filho. Essa parte do poema, intitulada de Auto de Natal, é claramente uma referência ao nascimento de Jesus. O pai da criança se chama José, o nascimento é apresentado como um presépio e os vizinhos trazem presentes — simples lembranças de pessoas pobres que apresentam ao menino como "
Minha probreza é" — como os três Reis Magos.
"
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena"
O fim, que parecia óbvio na morte, já que ela acompanha Severino durante todo o seu percurso, acaba sendo a vida! Vida essa que insiste em continuar acontecendo, mesmo em meio à tanta miséria e desolação.
Morte e Vida Severina é um poema trágico, melancólico e que nos traz imensas reflexões, nos tira da zona de conforto e nos faz desconfortáveis diante de uma realidade seca. João Cabral de Melo Neto foi genial na forma como construiu esse poema, com versos curtos e sonoros que fazem sua leitura quase cantada, lembrando os cordéis. A repetição também é um recurso muito usado pelo autor para enfatizar o tema e as dores que ele carrega.
Nesta edição especial em capa dura da Editora Alfaguarra, somos presenteados com apresentação de Antonio Carlos Secchin, depoimento de Chico Buarque e texto de Alceu Amoroso Lima.
Super recomendo a leitura!