Ive Brunelli 13/05/2021
(Anti-)Herói fake ou a apoteose do paradoxo
É curioso ver um livro tão bom com avaliação mediana entre seus leitores. Talvez o problema esteja no protagonista, Adam Gordon, que está longe de ser uma “personagem bem construída”, um conceito valorizado entre aqueles que tentam qualificar obras literárias. Na verdade, Adam é um anti-herói. Até aí, tudo bem: anti-heróis clássicos, como Ema Bovary, em seus caprichos e anseios, fizeram a glória de um romance; ou Hannibal Lecter, em sua insanidade glutona; ou Dom Quixote, que era meio doidinho. A lista é longa.
Essa liturgia não se aplica aqui: Adam Gordon não tem nada a ver com personagem bem construída. Ele é um paradoxo essencial. Contradição em gotas. Antipatizar com ele é elementar, ele é antipático mesmo, inseguro, mesquinho, cínico, por vezes execrável. Pois que Adam Gordon está perdido. Como eu e você na canoa furada de uma vidinha-clichê qualquer.
O grande tema de Estação Atocha gira em torno da alienação de si mesmo, o lugar do eu no mundo, a desconexão com a realidade escrota que está aí, a noção de pertencimento, as frustrações perante essa sociedade que se configurou de modo canhestro, as incertezas, o caráter fake da vida cotidiana: no mundo de Adam, viver é se ferrar ou se safar ao mesmo tempo em que se tenta parecer alguém sério, culto, bonito, desejável, viajado, rico, inteligentíssimo ou sabe-se lá o quê. Viver é uma inconsequência. Um mico.
Adam Gordon se sente uma fraude: não sabe bem por que ocupa o lugar onde está, por que faz o que faz, por que é o que é. Tampouco tem certeza sobre o que sabe, o quanto sabe, pra que serve aquilo que sabe. É narcisista, mas não sabe o que fazer com o próprio ego, nem como canalizar e interpretar seus desejos. Ele parece acuado, em constante fuga de si mesmo e do mundo a seu redor. Um mundo fascinante e assustador, onde tenta enganar a si e aos outros, sem perder certa aura de mistério, ainda que, de novo esse termo, Adam permaneça fake, fakíssimo. E assim vai levando uma vida sem rumo, entre a dor e o prazer, se dopando com substâncias lícitas e ilícitas, numa toada alucinante do mais vero desassossego.
As mulheres com quem se relaciona não se interessam por ele tanto quanto ele gostaria que se interessassem, mas em contrapartida ele também não sabe o quanto se interessa por elas.
Em uma viagem a certa cidade, deixa de conhecer um emblemático ponto turístico, mais ou menos como ir a Paris e não ver o Arco do Triunfo. Ao se perder num lugar desconhecido e ficar vagando sem destino por horas, não sente a angústia em profundidade: no meio de um possível desespero, toma atitudes improváveis. Essa cena é a perfeita alegoria da vida deste protagonista. Mas, quer saber? Adam não está nem aí.
Se Adam não tem muito a perder, também não tem muito a ganhar. Ele se move por ímpetos, por conveniências, paga micos, mente desbragadamente, bajula e despreza com a mesma intensidade. Na dúvida, toma uns drinques. A futilidade das situações e pessoas que encontra pela noite combina totalmente com sua falta de propósitos, mesmo quando aparentemente existe um propósito: estudar na Espanha, porque ele é um bolsista de quem se espera um trabalho acadêmico coeso e coerente. Apenas mais uma inconsequência, que pode acabar sendo divertida, que talvez até lhe traga alguma notoriedade no meio desse furacão. Ou não. Adam paga pra ver.
Adam é um existencialista pós-moderno. O mundo está em chamas, centenas morrem num horrendo atentado terrorista, bem debaixo do nariz dele, e ele, sim, acompanha tudo: pela Internet.
Adam Gordon é um patife. Mas um patife neurótico, sofrido, medroso e carente. Para coroar essa patifaria com magna cum laude, o livro apresenta esta curiosa questão de linguagem: Adam é americano morando na Espanha. É pesquisador, deveria conhecer o idioma espanhol de forma ao menos razoável, mas até nisso ele é uma fraude muito fraudulenta: seus conhecimentos linguísticos ainda engatinham, ele interage fingindo entender as pessoas, capta tudo pela metade. Quando se expressa em espanhol, dá o truque nas elocuções de modo a se passar por intelectual, poeta ou alguma entidade enigmática de certa persona estrangeira que ele encarna. Se não encantar nem intrigar ninguém, ou se se perder nessa grande farofa, então fala inglês. E pronto. Quando não entende o que alguém diz, ou quando não se expressa de maneira suficientemente inteligível, busca atribuir significados aleatórios às elocuções, mesmo que isso implique em múltiplas interpretações para seus interlocutores ou para si próprio. Mas e daí, quem se importa.
A riqueza dessa história ainda inclui a relação de Adam com remédios antidepressivos (quem nunca). Sob o efeito dessas drogas ele fica mais fake ainda. Mas convenhamos: ninguém é obrigado a aguentar a barra pesada do mundo sem um estupefaciente.
Odiar Adam não significa muita coisa quando se termina a leitura do livro, não traz novidade à análise. Adam não clama por empatia. Aliás, odiamos Adam porque certamente todos nós já vivemos alguma situação parecida com a dele (quem nunca nunca). Adam incomoda justamente porque cotuca certas feridas universais. No final das contas, (quase) senti pena: no fundo, Adam é um grandissíssimo ansioso, um perdido, um mocinho assustado e carente. Inteligentinho, espertinho, descoladinho, abusadinho, mas todo lascado. Frágil, frágil.
Ser uma fraude respaldada pela condição prestigiosa de pesquisador-bolsista-e-poeta mostram Adam como representante de uma hiper-realidade, aos moldes de Umberto Eco ou Jean Baudrillard: mais que fingir ser poeta, ele finge que finge ser poeta. É (ir)real além da (ir)realidade. Essa hiper-realidade é reforçada por outro conceito, o da desterritorialização, agora nos moldes de Deleuze e Guatarri: estar na Espanha, interagindo numa outra língua, fingindo estar apaixonado, inventando passados para si mesmo quando fala de si para os outros. Estar longe do campanário, aquele lugar onde você cresceu, estar livre para se tornar outra pessoa no país estrangeiro. É só você querer. É como você puder. Tudo se confunde e ao mesmo tempo faz sentido em meio ao caos. Pouco importa se o lado ruim das coisas pode ser bom ou vice-versa. No meio da realidade sufocante, ou depois de cruzada uma fronteira da qual não se pode mais retornar, tem dia que é melhor ser estrangeiro mesmo.