Leonardo 31/08/2012
Lo-li-ta
Disponível em: http://catalisecritica.wordpress.com
"Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta.
She was Lo, plain Lo, in the morning, standing four feet ten in one sock. She was Lola in slacks. She was Dolly at school. She was Dolores on the dotted line. But in my arms she was always Lolita."
Este certamente é um dos inícios de romance mais famosos da literatura, e está sempre presente nas listas desta espécie, como aqui e aqui.
Lolita conta a história de Humbert Humbert, um homem branco e viúvo e pedófilo. Ele é mais inteligente do que a maioria das pessoas, mais sensível, mais sagaz e exatamente por conta disso sabe o quanto é doente. Escrito no formato de memórias ele relata como conheceu Charlotte Haze, uma viúva com uma filha de doze anos, Dolores Haze, Lolita.
Ao ler um grande escritor, meu foco se divide, inevitavelmente. De um lado, a história, a narrativa; do outro, e talvez com preponderância, o estilo, o feitiço com as palavras que é domínio exclusivo daquele autor. Gosto de listas, e gosto especialmente de listas sobre livros. Naturalmente dou atenção a listas elaboradas por quem merece atenção. Examinando listas como a da Modern Library, da revista Time , Harvard) ou da World Library) é possível ver que Lolita sempre aparece em destaque. Isso foi despertando em mim um interesse em conhecer o romance e ver o que Nabokov tem de mágico, como ele conseguiu transformar a história de um pedófilo em um clássico da literatura mundial.
O começo do livro e a passagem em que Humbert Humbert avista Lolita pela primeira vez (ver em http://catalisecritica.wordpress.com) já são suficientes para identificar um pouco do estilo do russo. Autocrítica, ironia, acidez, uma imensa capacidade de observação e, especialmente, de colocar no papel o que vê, tornam a leitura de Lolita agradável e fluída.
Mas não é o estilo de Nakobov que mais chama a atenção. É Humbert Humbert, o terrível. Com muito bom humor e demonstrando um imenso desprezo pela sua própria pessoa, ele muda seu próprio nome, montando trocadilhos, de acordo com a situação. Humburger, The Humble Hunchback (o corcunda humilde), Humburger, Hummer, Hummerson, Humbert the Hoarse (o áspero), Humbert the Wounded Spider (a aranha ferida), Jean-Jacques Humbert, Hamburg, Humbird, Humbug, Humbert the Hound (o cão de caça), Humbert the Humble (o humilde), Herr Humbert e muitos, muitos outros.
Ele ama Lolita. Mais do que isso, é obcecado por ela, louco, dependente. Ele sabe muito bem o mal que faz à menina, as marcas que ficarão para o resto da vida dela, mas seu desejo é mais forte, sua doença cala sua consciência. Um belo exemplo disso está na passagem que narra o dia seguinte da primeira relação sexual dos dois. Humbert Humbert sabe o ato monstruoso que fez, mas não consegue evitar que o desejo volte mesmo vendo a fragilidade e a dor da sua presa (ver a passagem completa em http://catalisecritica.wordpress.com.
É uma história triste, e não poderia ser diferente. Trata de um tema sério, com consequências terríveis para todos os envolvidos, mas a narrativa é hipnotizante e você quer ir até o fim. E a parte final é bastante louca, ou pelo menos assim me pareceu. Não vou contar o que se passa, mas um terceiro personagem aparece como responsável por uma série de ações passadas, e muda o rumo da trama. Sei que o fato de eu ter lido em inglês, tornou a compreensão de determinados trechos mais difícil, mas quando Lolita está prestes a revelar a identidade deste terceiro personagem, por exemplo, Humbert Humbert antecipa: você, meu caro leitor, sabe quem ele é há muito tempo. Eu confesso: não tinha a menor pista de quem poderia ser. Mas pelo que já pude verificar, há Easter eggs no livro, especialmente um na introdução (ainda não consegui descobrir, mas sei que o farei na minha releitura). Apenas para reforçar o aspecto insano do final do livro, há um assassinato que é uma das cenas mais surreais que se possa imaginar. Nabokov mostra todo o seu potencial narrativo, misturando pastiche, certo clima noir, drogas, nonsense e nem sem mais o quê.
Ao final, a impressão de que Humbert Humbert é real é tão forte que não pude deixar de imaginá-lo como alter ego de Nabokov. A obsessão, as pequenas e grandes perversões, o olhar viciado, a narrativa confessional tão próxima e vibrante Cheguei a pensar: é a confissão de Nakobov. Aí leio uma nota no final do livro, escrita e assinada pelo próprio Nabokov, que desfaz esse encanto maléfico e me faz lembrar: ele é só um escritor de imenso talento, só isso.
Lolita tem uma lição de moral, quer passar uma mensagem? Dentre outras brilhantes observações, Nabokov diz o seguinte a respeito disso (tradução livre minha):
"Há almas gentis que afirmam que Lolita não faz sentido porque não lhes ensina nada. Eu não sou nem leitor nem escritor de ficção didática, e, a despeito da afirmativa de John Ray, Lolita não traz em si nenhuma moral. Para mim uma obra de ficção só existe na medida em que me permite o que eu vou chamar desajeitadamente de êxtase estético, que é a sensação de estar de alguma forma, em algum lugar, ligado a outros estados do ser, onde a arte (curiosidade, ternura, bondade, êxtase) é a norma."
Obra-prima inquestionável, mostra o poder que tem a literatura de criar mundos, de criar indivíduos, de criar tragédias.