spoiler visualizarMárcia Regina 14/08/2013
Confesso que Werther me soa volta e meia como um menino mimado e pouco exigido pela vida. Não são raros os momentos em que a vontade que se tem é de mandá-lo crescer e parar com as choramingas.
Agora, há um aspecto que torna trágica essa situação e que percebi ao ler "A confissão de um filho do século", de Alfred de Musset.
Na parte inicial do livro de Musset, encontramos o seguinte:
“Durante as guerras do Império, quando maridos e irmãos se achavam na Alemanha, as mães inquietas puseram no mundo uma geração ardente, pálida, nervosa. Concebidos entre duas batalhas, educados nos colégios ao rufar dos tambores, milhares de meninos se entreolhavam, sombrios, distendendo os músculos entorpecidos. De vez em quando, manchados de sangue, os pais apareciam, levantavam-nos até o peito engalanado de ouro e, depois, pondo-os de novo no chão, tornavam a montar a cavalo.”
E assim vai, o livro de Musset fala sobre uma geração de jovens criada por pais e avós que lutaram na guerra e viram gradativamente seus ideais sendo destruídos ou corrompidos.
Essa juventude, quando criança, se preparou para fazer "grandes coisas", dominar o mundo, pela espada ou pelas idéias, assim como os pais e avós. Quando chegou seu momento, o mundo não tinha mais espaço para eles, e a energia imensa, que deveria transformar a sociedade, acabou sendo canalizada para sentimentos pessoais.
O amor se transformou em uma válvuva de escape para o vazio. Dele se esperava a realização e a felicidade plena. Como se o amor, por si só, pudesse sanar toda uma realidade de desencanto e frustração.
Esse é o sentimento vivenciado por Werther. Nele foram jogadas todas as cartas. Não percebo tanto Werther amando Charlotte, mas sim buscando uma solução para sua própria vida. Uma vida que ele, como jovem e como "intelectual", acreditava merecer ser grande. E que, dentro dessa mentalidade, estaria justificada se vivesse um amor que fosse grande.
Não é estranho que decida realmente morrer quando se vislumbra uma possibilidade - ainda que pequena - de realização do que considerava o "sonho de toda sua vida"?
Ele se matou depois das primeiras comprovações de que ela estaria começando a se interessar por ele, a se deixar embriagar.
Na verdade, sonhamos com um êxtase extremo, algo que nos tire de todas as amarras, amar alguém de uma forma tal que absolutamente nada seja maior ou tenha sentido frente a esse amor. Ainda mais em nosso momento, em que tão pouca coisa consegue nos atingir, nos provocar verdadeiramente. Mas poucos teríamos capacidade de suportar o peso que esse tipo de amor representa.
E, para mim, Werther não teve, não. Ou, depois do beijo, nada o faria desistir dela. Ele desistiu.
Nesse sentido, vejo Werther como alguém que busca o impossível, o risco, a exaltação, aquilo que ia além da sua própria vida. Mas a sua vida não tinha condições de suportar esse tudo que ele queria ser. É Werther quem diz:
“Ó meus amigos, por que é que tão raras vezes se vê a torrente do gênio altear-se em grandes ondas, avançar rugindo e perturbar as almas maravilhadas?”
Isso é ele teorizando, mas a sua realidade o mostra colocando nos outros a solução ou a causa/culpa das suas dificuldades, vendo no mundo externo ou nos sentimentos acarretados pelo mundo externo a causa de suas tristezas, desencanto e tédio.
Veja-se a primeira amiga, a que morreu, fala dela como de alguém que viabilizava o potencial que ele acreditava possuir; fala de Carlota como de alguém capaz de trazer a felicidade que não possui; retrata o trabalho como a causa da opressão que sente. A responsabilidade pela vida é jogada nas costas de outras pessoas. Não só da vida, mas da própria morte. Quando diz "me sacrificarei por você" isso fica claro.
Werther mostra sua personalidade de forma gradativa. Inicialmente senhor de si e do ambiente, aos poucos se modifica e perde o controle.O sentimento é maior do que sua personalidade pode suportar (e é legal como a forma de descrever a natureza vai acompanhando essa mudança).
Enquanto o amor é visto como teoria, ele inclusive assume um ar de mestre, de conselheiro. Veja-se bem no início, falando da irmã do amigo, que se apaixona por ele. Ou do noivo mal-humorado.
Depois, gradativamente, perde o controle. A visão da amada como um ser sagrado, do qual só quer o bem, é fugaz. Logo, ele exige, invocando todo o "poder da vítima", sente-se infeliz e injustiçado. O desejo de receber assume o controle. Na vida real, essa bondade, o "fazer tudo pelo outro" acaba virando chantagem pura. Provavelmente o passo para agredir Carlota estava próximo.
E é interessante como um texto daquela época pode também refletir nossa situação hoje.
Frustrado por não ser correspondido, Werther se destruiu, não soube lidar com esse sentimento. Hoje, quantos casos não vemos de pessoas que, não sendo correspondidas, agridem, matam, mutilam a si ou ao objeto amado. A reação é grande demais, denota uma frustração com a vida toda, uma incapacidade de perceber que a vida vai além daquele núcleo amoroso.
Gosto muito do livro pelas nuances infinitas de interpretação que possui, seja no referente à personalidade de Werther, à de Carlota, do amigo, do noivo, da época, da linguagem, do estilo, de tudo. E tudo muda radicalmente dependendo do modo como olhamos o personagem, voltados para a época do autor ou com nossos conceitos e preconceitos pessoais (que embasam essa resenha).
O livro tem uma sucessão de cartas, recurso literário comum na época. Não consigo deixar de pensar: cartas implicam leitor. Ou seja, são íntimas, sim, mas são feitas para o outro.
Ainda que escrever em um diário seja também esperar, de certa forma, que alguém o descubra e leia, escrever uma carta não significa apenas esperar "ser encontrado", mas buscar claramente a leitura do outro. E mesmo esperar retorno, resposta.
Werther falava para Wilhelm (e, também, com a intenção de que Carlota e Albert lessem suas cartas no futuro) ou Goethe falava para a sua geração? Pelo que sei, Goethe tinha por volta de 28 anos quando escreveu Werther, era jovem ainda.
E se Goethe falava para sua geração, dizia o quê? Que só um amor assim valeria a pena, teria algum significado dentro de um momento histórico e social perdido e sem ideais verdadeiros? Ou seria um alerta, um chamado para a conscientização do que um sentimento sem limites sociais, culturais, sem os limites da razão seria capaz de provocar?
Ou, mesmo, uma constatação cheia de desencanto da inviabilidade de vivência do todo que a juventude de sua época sonhava viver.