Leila de Carvalho e Gonçalves 01/10/2021
Hamlet
Com o selo da Intrínseca, em setembro chegou às livrarias o romance ?Hamnet?, da irlandesa Maggie O?Farrell, entretanto dois meses antes ele já fora distribuído para os membros do Clube de Leitura da editora.
O título refere-se ao único varão da prole do poeta, dramaturgo e ator William Shakespeare. Filho do meio, Irmão de Susanna e Judith, a caçula de quem era gêmeo, Hamnet faleceu em 11 de agosto de 1596, aos 11 anos. Uma fatalidade praticamente esquecida pela história, à medida que são essas as únicas informações conhecidas a seu respeito.
Inclusive, William jamais publicou um poema mencionando o filho ou a dor pela sua perda. Já na dramaturgia, há reincidências de duplos ou gêmeos idênticos, mortes precoces e, a tragédia ?Hamlet?, uma variante de Hamnet, que sempre foi alvo de especulações quanto a uma possível semelhança entre o filho e a personagem além da relação envolvendo memória e ficção.
O?Farrell optou por tal perspectiva para escrever o livro e surpreendentemente, tornou O Bardo de Avon um personagem secundário e, em nenhum momento, seu nome é mencionado. Ele surge ainda jovem, antes do reconhecimento de sua genialidade, incapaz de adequar-se a um ofício e uma vida regrada, isto é, sem muito empenho leciona algumas aulas particulares de latim, vez por outra realiza alguma tarefa a mando do pai, um luveiro charlatão, e todas as noites, frequenta às tavernas da vizinhança.
Se o protagonismo do romance não recai em William, também não pertence a Hamnet, mas a Agnes, pronuncia-se Ann-yis, mais conhecida por Anne, esposa de um e mãe do outro. Essa troca pode parecer estranha à primeira vista, mas deve-se ao nome mencionado por Richard Hathaway, o pai de Agnes, em seu testamento. Por sinal, o vistoso dote que recebeu, quando ela era uma criança, assemelhava-se a uma bênção para uma mulher que, até os 26 anos, parecia destinada a não se casar, visto que era ?estranha e selvagem. Costumava caminhar pela propriedade da família com um falcão pousado na luva e tinha dons extraordinários: adivinhava o futuro, intuía sobre a natureza das pessoas e sabia como curá-las mediante poções e plantas?.
Portanto, ?Hamnet? não é somente uma narrativa que tematiza unicamente o luto, também é uma história de amor entre duas pessoas excêntricas, fora dos padrões, que deságua num casamento constantemente posto à prova. Agnes mostra-se habilidosa ao lado de um marido dotado de imaginação mas destituído de senso prático. Sem crédito, ela apoia as ambições de William, ao mesmo tempo que é uma mãe dedicada. Resumidamente, ela assume a responsabilidade pela felicidade dos seus, sacrificando a sua, resultando num delicado equilíbrio que se rompe com a morte do filho, pois o casal responde de maneiras distintas ao luto. Enquanto Agnes passa a conviver com a depressão e a sensação de ter falhado na missão de proteger o filho, William dá-lhe as costas e sem demora, retorna a companhia teatral que fundou em Londres.
Quanto ao tempo narrativo, a escritora exibe destreza na sua construção. Ela alterna duas linhas temporais: a primeira começa em 1596, quando a peste negra exibe os primeiros sintomas na pequena e frágil Judith; a outra, retrocede 15 anos, na ocasião que William e Agnes se conhecem na propriedade dos Hathaway, enquanto ele dava aulas para seus futuros cunhados. Aliás, essas linhas encontram-se na última parte do livro que principia após a morte de Hamnet.
Outro ponto sugestivo está no meio do romance. Em 18 páginas, a escritora comenta como as viagens marítimas contribuíram para a disseminação das doenças infecciosas, ou seja, como um macaco na Alexandria, um grumete da Ilha de Man e um vidreiro veneziano foram cruciais para a transmissão da peste bubônica que teria alcançado a Inglaterra no final do século XVI, afetando profundamente o destino dos Shakespeares.
Nesse caso, o vetor são as pulgas infectadas que saltam de um corpo para outro, semeando grande sofrimento físico e, costumeiramente, a morte. Causa surpresa as medidas sanitárias adotadas na Renascença e como 400 anos depois, a despeito do avanço da ciência, essa questão continua e continuará desafiando a humanidade, acelerando as desigualdades e exigindo o persistente combate ao negacionismo, comumente associado a interesses econômicos e políticos.
Finalizando, ?Hamnet? é atemporal e, conduzido por vividas descrições e presságios sombrios, remete a um desfecho comovente. Sem dúvida, está entre as melhores leituras que fiz este ano. Recomendo, sobretudo, para quem se encantou com o premido romance ?Lincoln No Limbo?, de George Saunders.
?Então baixa o silêncio, a imobilidade. Nada mais.? (Página 201)