alineaimee
10/01/2023Traumas que endurecem"Não sei se quero que ela pare de mamar. Dar o peito é o único carinho que sei. O que vou fazer quando ela parar de mamar? Sem o peito, sem o leite, ainda vou ser mãe da menina?"
"Percebi que toda personagem que ela inventava era diferente e, ainda assim, era ela mesma. Tinha que ter muita imaginação pra contar a mesma pessoa de modos distintos, como se fosse a primeira vez. A fome ensinava a ser criativa."
"Agora me dei conta: a chegada da menina me engravidou de novas palavras. Fico pensando que escrever é um parto infinito. A gente vai parindo devagarzinho, letra por letra, que se não saem ficam encruadas dentro fazendo mal, ferindo a gente feito felpa que entra no dedo. Tem que tirar com agulha, espremer o pus. Dói parir palavras. Dói mais ainda viver com elas dentro."
???
Devorei "A filha primitiva", da escritora cearense Vanessa Passos, num sábado chuvoso. É um livro duro sobre maternidade e ancestralidade, que expõe as consequências trágicas de desconhecer as próprias origens e de não saber nomear violações. É também sobre como para ser mãe e escritora é preciso nascer, muitas vezes, de parto doloroso.
Gostei muito de como a autora relaciona a escrita da narradora ao amálgama complexo de ressentimento, falta e narrativa oral materna. Escrever tem algo de se reconstruir, de preencher lacunas e remendar estragos.
O romance possui um estilo seco e brutal que se ajusta bem ao endurecimento da narradora. Vanessa não tem pena do leitor. Gosto assim.
Algumas questões, no entanto, causaram ruído à leitura. O final é muito bonito, mas abrupto. Tenho dificuldade em acompanhar a motivação de personagens em narrativas sincopadas, quando a história envolve temas densos ou feridas emocionais profundas. Em determinado momento, a transformação de uma das personagens acabou me parecendo um tanto súbita.
O livro foi vencedor da sexta edição do Prêmio Kindle e me foi enviado como cortesia pela editora.