Lauraa Machado 06/06/2022
Tão divertido, que ofusca os problemas do livro
Esse é exatamente daquele tipo de livro que você lê achando tudo o máximo, se divertindo sem parar com uma leitura viciante. Aí chega no final e, parando para pensar só um pouquinho, já percebe que muita coisa não fez sentido, algumas foram bastante fracas e outras deixaram vários furos.
Foi bem o que aconteceu comigo. Durante a leitura, eu estava amando tudo. Mas foi só eu terminar que já não conseguia mais fingir que foi um livro bem escrito e bem desenvolvido.
A coisa que menos fez sentido, para mim, foi a protagonista. Zetian foi criada em uma área rural de refugiados em um mundo extremamente machista e misógino. Absolutamente todas as pessoas à sua volta são conformadas, não questionam nada e nunca nem parecem perceber a injustiça que as garotas e mulheres da sociedade sofrem. Como Zetian virou uma feminista de marca maior sozinha, eu não sei. Ela mora no meio do nada e no máximo uma vez por mês nos últimos três anos ela teve a chance de ler por cima a matéria que um amigo tinha na escola (que podemos supor ser também bem machista). De onde saiu tanto feminismo, pelo amor de deus?
Seria bem diferente se ela estivesse começando a questionar as coisas, principalmente baseado em suas próprias experiências, considerando que ela foi criada com os mesmos valores que todo mundo que ela conhece. Tem que haver alguma razão palpável para ela começar a questionar e muito mais ainda para ela chegar no ponto em que estava. Ela soa como uma feminista de vinte anos de ativismo, quando nem em uma cidade ela já tinha ido, quanto mais conhecido pessoas que pudessem ajudá-la a mudar o que aprendeu desde pequena.
E é claro que esse livro feminista sofre daquele mesmo problema que quase todos os livros que se autointitulam feministas sofrem: somente uma personagem feminina é importante e ela é a protagonista. Não tem uma única outra mulher nele que seja relevante, nenhuma outra é minimamente feminista, nenhuma outra tem qualquer força pessoal ou na história. Tenho quase certeza de que esse livro nem passa no teste Bechdel, o que seria bem irônico. Zetian fala sobre direitos das mulheres e do que elas passam, mas parece nunca enxergar uma única outra mulher à sua volta. E quando eu achei que íamos ter outra mulher importante, claro que ela era invejosa por causa da atenção do seu homem pela protagonista. Pelo amor de deus, sabe?
Outra coisa que fez pouquíssimo sentido foi a motivação da Zetian. Ela decide ir matar o assassino da irmã, mesmo que isso mate a ela e toda sua família (como punição), mas não existe uma única cena de companheirismo entre ela e a irmã, uma cena que mostre quem a irmã era, por que elas eram próximas (minha impressão foi até de que elas não fossem nem próximas), por que a Zetian tinha a coragem e a vontade de ir atrás de vingança pela morte da irmã. Não pode ser só porque eram irmãs, porque ela não tinha nenhum carinho pelas outras mulheres ou homens da sua família. Precisava de uma explicação maior.
Por último, sobre a criação da Zetian antes do começo do livro, ela tem tantas, mas tantas informações sobre todo o sistema dos mechas e do qi, que nunca fica perdida, nunca descobre novas informações, e eu continuo sem saber de onde ela tirou tanto conhecimento. Ela diz que os homens na área em que ela morava se juntavam para assistir às batalhas por ser caro ou inacessível para cada um ter a sua transmissão, e que as mulheres eram um pouco excluídas disso, ficando nas margens. E ela não só conhecia todo mundo, mas sabia sobre como tudo funcionava antes mesmo de chegar perto dos mechas?
A última coisa que não fez sentido nenhum foi a criação do universo. Eu relevei essa questão pelo livro todo, porque achava que a posição da protagonista contribuía para a falta de informações. Mas chegou em um ponto em que ela tinha tanto acesso, que não havia mais desculpa para uma criação tão vaga. Eu não sei como nada funciona nesse universo, só as batalhas mesmo. É a única coisa explicada. Não sei quem comanda o governo, como a vida funciona para além das batalhas, e, honestamente, não fez nenhum sentido para mim ter tantas batalhas assim. É o tempo todo, não dá tempo de viver e existir normalmente, nem sei como as pessoas comuns aguentam ou se ao menos vivem vidas normais. Nada disso é mostrado. A história do lugar também é bastante vaga. No começo, achei que era porque a Zetian só tinha aquilo de informações e que iria descobrir mais, mas não, é só aquilo mesmo.
Por isso, talvez, que as revelações no final foram tão previsíveis para mim. Não foi só isso também, mas toda a questão do ying yang. Muito previsível. Ainda tem outras revelações e decisões até da protagonista que me surpreenderam e que ajudaram a deixar a história mais divertida, mas as mais importantes estavam muito na cara e a Zetian não ter ao menos considerado a opção antes não encaixou tão bem com a mentalidade que ê autore tinha dado para ela em todas as outras questões.
Sobre o romance, confesso que esperava mais. Ainda assim é bem bacana, mas teria sido tão melhor se ao menos tivesse outro ponto de vista além do da Zetian. Uma narrativa de múltiplos pontos de vista teria valorizado demais essa história. O único problema mesmo do romance é que os dois garotos precisavam demais ter sido mais explorados, mas desenvolvidos entre si, o que teria sido super fácil de fazer com a mesma quantidade de cenas e acontecimentos se tivesse o ponto de vista de pelo menos um.
O fato é que não existe monólogo interno da parte da Zetian, ainda que seja um livro narrado na primeira pessoa. Ela é inteira feita de ações e quase nada de pensamentos. Ela não tem um desenvolvimento pessoal e emocional, abordado na narrativa. Ela só toma atitudes sem pensar, e isso acabou muitas vezes prejudicando a minha compreensão dela como pessoa.
Por exemplo, tem uma hora que algo acontece e ela diz "Finalmente!" quando em nenhum momento ela chegou perto de pensar naquilo, quanto mais chegar ao ponto de achar que estava demorando para acontecer. Realmente, foi a protagonista narradora que menos pensou, questionou e se desenvolveu emocionalmente pela narrativa que eu já encontrei. A gente tem que adivinhar que ela mudou sua opinião e o que está sentindo pelas atitudes dela, porque não tem qualquer indício disso no que ela pensa.
Aliás, não tirei nota por isso, mas confesso que esperava um questionamento menos binário sobre as pessoas nesse universo e seu qi. Claro que o ponto de partida não seria esse, mas foi o que eu esperava da descoberta da Zetian pelo livro, mais por ê autore ser não-binárie. Espero que venha no próximo livro.
Mas, para não falar que eu não gostei de nada, tenho que admitir que eu amei o Shimin, amei as batalhas e a questão dos mechas, adorei como a Zetian faz tudo na base do ódio e eu realmente gostei demais dela! Só precisava mesmo que a construção da personagem fizesse sentido! A base da história, dos personagens, do mundo em que se passa, de tudo isso é tão legal, tão emocionante e incrível, que precisava ajustar poucas coisas para o livro ser excelente! Talvez tenha sido publicado um pouco rápido demais, não sei.
Depois disso tudo, eu ainda recomendo o livro! Já ouvi dizerem que é um livro bem "farofa", e é mesmo, além de que eu continuo achando que foi super divertido e que ê autore tem potencial para fazer o próximo livro da série ser excelente! Acho só que elu passou tempo demais criando os mechas e a arte do livro, tempo que devia ter sido investido no livro. Mas confesso que adoro poder ver as ilustrações (estão no site xiranjayzhao.com).
É, aliás, pelo fato de que esse livro tem muita coisa incrível e tinha potencial também para ser espetacular que eu fico decepcionada por tanto detalhe mal desenvolvido. Queria que se tornasse um grande favorito, e realmente acho que é tão viciante e divertido que vale a leitura, mas não chegou perto do quanto queria ter amado!