Tamires 13/06/2020A vida mentirosa dos adultos, de Elena FerranteÉ inevitável: depois da Tetralogia, todo livro que leio da Elena Ferrante procuro ficar atenta ao momento em que a narrativa está prestes a me capturar, a ponto de eu não querer saber de mais nada do que está acontecendo a minha volta, a não ser o destino das personagens. Em A vida mentirosa dos adultos eu tentei, mas quando dei por mim já estava rendida, devorando avidamente as páginas deste mais recente livro da escritora italiana. É inevitável, também, procurar numa frase ou outra resquícios, fagulhas, o que quer que seja de Lenu, Lila, do bairro, enfim, da Tetralogia. Mas neste livro a autora consegue um bom distanciamento de seu mais longo e famoso romance, embora o mais recente também tenha profundas raízes fixadas ao velho bairro industrial.
Em A vida mentirosa dos adultos, veremos a história de Giovanna, que também é nossa narradora. Ela é uma adolescente de classe média vivendo aquela vidinha bem pasteurizada de apartamento quando sente o primeiro impacto da transição da infância para a vida adulta: ela ouve acidentalmente uma conversa de seus pais, em que ele diz que ela é feia. Mas não uma feiura qualquer: Giovanna seria feia como a irmã de seu pai, Vittoria.
Essa tia é um ministério para Giovanna, espécie de assunto proibido em sua casa. Seu pai não é muito ligado aos familiares, os estudos e posterior ascensão social o distanciou de seus parentes, todos de origem humilde e provenientes do bairro industrial, no sul de Nápoles. A adolescente cresceu sem conviver com esses parentes, sem ter contato com o “dialeto” — linguagem vulgar e terminantemente proibida nas altas rodas. Mas se se o pai disse que ela se parece com essa tia Vittoria (feia), Giovanna decide que fará de tudo para conhecê-la. Essa jornada vai mudar não só a vida de Giovanna, mas a de todos à sua volta.
“Seu pai — disse com raiva — privou você de uma família grande, de todos nós, avós, tios, primos, que não somos inteligentes e educados como ele; nos eliminou com um corte seco, fez você crescer isolada, com medo que nós a estragássemos. Ela emanava rancor; todavia, naquele momento, essas palavras me causavam alívio, eu as repeti na minha cabeça. Afirmavam a existência de um laço forte e positivo, exigiam-no. Minha tia não dissera: você tem meu rosto ou pelo menos se parece um pouco comigo; minha tia dissera: você não é apenas do seu pai e da sua mãe, você também é minha, você é de toda a família da qual ele veio, e quem fica do nosso lado nunca fica sozinho, se recarrega de força.” (p. 78)
“as coisas feias que você não conta para ninguém se tornam cães que comem a sua cabeça à noite enquanto você dorme.” (p. 147-148)
“O que se passava, afinal, no mundo dos adultos, na cabeça de pessoas extremamente racionais, em seus corpos carregados de saber? O que os reduzia a animais dentre os menos confiáveis, piores que os répteis?” (p. 169)
“— Não entendo mais meu pai e minha mãe.
— Você vai entender quando for grande.
Todos diziam que eu entenderia quando fosse grande.
— Então não vou crescer — respondi.” (p. 248)
A vida mentirosa dos adultos mostra a perda da inocência, o momento em que descobrimos que nossos pais podem, sim, em alguns momentos ou situações serem pessoas sórdidas, mentirosas. E, inevitavelmente ao crescer, entramos nesse mundo de mentiras, seja para nos defendermos, seja porque essa é, realmente, a vida dos adultos. É interessante como a autora mostra que mesmo em famílias cultas, em que o diálogo é aberto e nenhum assunto é censurado (Giovanna e suas amigas tinham pleno conhecimento didático/pedagógico sobre questões sexuais, sociais e tudo o mais que é considerado importante para uma formação “completa”), algumas coisas precisam ser aprendidas na prática. Precisa doer na carne para fazer sentido.
Para mim às vezes é difícil falar sobre os livros da Elena Ferrante (principalmente sem dar spoilers, no caso dos romances), porque são tantos acontecimentos, é tanta informação e são tantos sentimentos que as leituras me despertam (estou sempre relendo), que tenho medo de falar mais do mesmo. Ainda assim, preciso dizer que A vida mentirosa dos adultos foi uma leitura bem emocionante, me prendeu bastante (li em duas sentadas) e não sei se é desejo de fã ou sexto sentido: a história é fechadinha (no estilo Ferrante, mas é), mas caberia perfeitamente uma continuação. Vou ficar torcendo!
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