Ari Phanie 06/08/2020Calibã e a borboletaNós estamos vivendo atualmente uma onda de entretenimento onde os perversos e os sociopatas são as grandes estrelas. E sendo assim, são altamente romantizados. A exemplo da série You e do filme 365 dias, a gente percebe como transtornos mentais e crimes sexuais foram glamourizados a níveis preocupantes. O Colecionador é dos anos 60, mas John Fowles também quis tornar o seu sociopata mais simpático aos seus leitores.
Frederick Clegg é um funcionário municipal, homem comum, do tipo que a gente pode esbarrar nas ruas todos os dias. Mas Frederick não tem amigos, não se dar bem com sua família e não gosta das pessoas, em geral, preferindo manter um afastamento de todos. A falta de inteligência emocional do personagem o impossibilita de reconhecer e entender os sentimentos alheios. No entanto, há uma coisa com a qual Frederick acha que teria uma relação perfeita: Miranda. Colocar Miranda como coisa foi totalmente proposital, foi exatamente o que o protagonista fez.
Miranda, uma jovem artista a quem Frederick via pela janela do seu trabalho, vira uma espécie de artigo da sua coleção, junto com as suas lindas e inanimada borboletas. Ela é sua espécime mais cara e apreciada, mas ainda é como as suas colegas de cárcere; não está viva. Ele a mantém trancada numa caixa para apreciar de vez em quando e raramente a escuta de verdade. A gente já sabe o final da Miranda no começo, não tem surpresa.
Amigos meus disseram que talvez eu não fosse gostar do final, que eu ficaria decepcionada. E fiquei mesmo. Não houve nenhuma surpresa aqui. As borboletas, Miranda, são artigos de uma coleção, e como todo colecionador, quanto mais espécimes Frederick capturar, mas aquele vazio doentio nele é preenchido, mas apenas momentaneamente.
Felizmente, Fowles escreve muito bem, e principalmente na Segunda Parte, ele deu profundidade à história (ao invés de apenas romantizar seu protagonista como um homem estranho, mas bonzinho que só precisa ser compreendido e não se sentir mais tão solitário...bah), e criou algumas reflexões muito boas. Miranda é uma personagem complexa, que ora aborrece, ora você compreende. Ela é jovem, ingênua e inexperiente, que, no entanto, consegue refletir e analisar as coisas com maturidade. Mas em alguns momentos, Fowles quis apenas que ela fosse uma antagonista para o seu protagonista, e isso não me passou despercebido.
Os rapazes bonzinhos, com cara de cachorros perdidos, que estão loucos para dar apenas amor e cuidar das suas "musas", mas que pra isso precisam afastá-las de todos que conhecem e obrigá-las a ser apenas deles estão por aí em alguma série, filme ou livro sem que você precise procurar muito. Eles são lindos, tem corpos sarados e são extremamente ricos podendo dar tudo a suas "musas". Na vida real, eles te fazem escrava sexual (Malik e Ariel Castro), te torturam, agridem e obrigam a ter filhos de estupros sistemáticos (Aloisio Giordano) ou traficam teu corpo. Eles não vão sentir muito, eles não vão sentir nada porque a mulher é só um objeto, exatamente como Miranda foi para Frederick.