karlinismo 29/03/2021
O dever de uma realização extraordinária
O homem possui um talento curioso: põe fardos que não lhe pertence sobre si.
Motivados pela cobiça, pela vanglória, pelo exemplo de outros, pelas circunstâncias, pelo desespero e desamparo, nas formas mais complexas e inusitadas, como só um ser humano é capaz de experimentar, somos inevitavelmente levados ao erro.
Nosso desejo de transcendência, nossa necessidade de preenchimento e nossa aspiração a posse do bem, natureza que nada pode fazer calar por completo, em vias desordenadas nos encaminham para um vazio existencial do tamanho de nós mesmos, e por isso insuportável. Com ébrio ou doentio entusiasmo, desejamos o mundo inteiro para saciarmo-nos nele. O sentido e o valor de nossas vidas é depositado em nossas obras e bens, proporcionando uma sensação de segurança e satisfação tão falsas e frágeis que, a menor contrariedade, nos empurra ao terror e desmedido sofrimento.
Tonio Kroger confessa, em sua devastada melancolia: "não encontro o que procuro". E, seu semelhante, Gustav Ashenbach, responde, atormentado pelos próprios nervos: "pois não conseguimos elevar-nos, apenas exerceder-nos".
E sim, execede-se continuamente a pobre humanidade pela crença utilitarista e destrutiva no dever de realizar coisas extraordinárias.
Engrandecer-se pelas obras e pelos bens. Você consegue se lembrar a primeira vez que ouviu que deveria "ser alguém na vida"?
O nosso valor passa a ser calculado pelo que fazemos e possuímos.
A causa e o fim pelo qual cada pessoa existe é desprezado e o valor inato e irredutível de cada alma é ignorado. E assim, vários vão perdendo-se, pretendendo forjar com as próprias mãos um sentido para as suas vidas.
O homem simples, anônimo, dócil ao presente, despretensioso, e que assim abraça-se a mais genuína felicidade é o maior mistério para uma geração calculista e cobiçosa.
Esta obra de Thomas Mann é abundante em camadas, trazendo inúmeras reflexões filosóficas e morais, além das ricas referências literárias. Para isso usa o estado do artista, apresentando sua posição na sociedade e sua conduta mordaz quando coloca altas exigências e ideais para a perfeição acima de tudo e todos. No entanto, isso é uma realidade amplamente humana, vivida por condições, objetivos e interesses múltiplos.
E essa perseguição a felicidade, a plenitude, a realização pessoal, nas coisas temporais e quebradiças é ferir-se. Ferida de morte!
Falando diretamente sobre os personagens, ambos sentiram a falta de algo no coração, sentiram aquele espaço inóspito que protesta por zelo e habitação, mas foram incapazes de dar nome às suas moções mais íntimas, interpretando, levianamente, como uma 'vontade de viajar'. E foram buscar fora o que estava dentro, e, sem nenhum espanto de minha parte, terminaram sem nada, divagando em ilusões.
Penso muitas coisas a respeito dessas histórias, e, infelizmente não concebo minhas impressões como gostaria, mas termino com a máxima bíblica: "Com efeito, de que adianta a um homem ganhar o mundo inteiro, se se perde e se destrói a si mesmo??. (LC 9, 25)