Lucas 17/11/2018
Fé e literatura: A busca por Deus é mais fácil do que se imagina
Poucos livros tem a chance de se tornarem eternos. Há obras que, independente do contexto histórico em que foram elaboradas, permanecerão atuais para sempre, seja emocionando ou ensinando. Suas linhas sempre serão válidas, desde que sejam escritas com uma pureza que transcende o passar dos anos.
Olhai os Lírios do Campo, publicado em 1938, ocupa um lugar de destaque na carreira do gaúcho Erico Verissimo (1905-1975): foi o quinto livro por ele escrito e o que trouxe ao autor maior destaque e relevância. Até então, Verissimo vinha sendo definido como um escritor sem grandes holofotes; Clarissa (1933) e Caminhos Cruzados (1935), por exemplo, eram obras inegavelmente bem escritas, por meio de narrativas puras que exalavam cheiros e sensações nostálgicas, mas que não continham aspectos mais concretos, mais edificantes. O escritor era conceituado como alguém "passivo", com narrativas incapazes de tomar posicionamento contra ou a favor de determinada tese. É provável que, nos primeiros anos da sua carreira, Erico ainda não tinha aprendido a "dominar um touro com as unhas", uma analogia ao exercício de narrar que ele expõe no terceiro volume de O Arquipélago (1962), obra que fecha a trilogia O Tempo e O Vento.
A presente obra trata da trajetória de vida de Eugênio Pontes, moço pobre que vivia com os pais e um irmão no subúrbio de Porto Alegre. Constantemente humilhado pela sua condição, ele acaba desenvolvendo em si asco pela pobreza e por todas as suas "desvantagens". Como era um menino tímido, não tinha outra distração que não a de estudar, e, por isso, com muito esforço e dedicação dos pais humildes, acaba posteriormente conseguindo se formar médico. É quando conhece Olívia Miranda (o sobrenome dela aparece apenas uma vez em todo o livro), colega da faculdade que, aos poucos, exerce sobre Eugênio grande influência. Obcecado pela ascendência social e profissional, o protagonista toma atitudes desprezíveis que, se não garantem a sua felicidade, tornam-no mais respeitável e "superior". No entanto, a vida em seus mais sinceros ensinamentos vai provocar grandes choques de realidade em Eugênio, cujo caráter é transformado ao longo das páginas. Tem-se, assim, uma obra com grande substância, bem diferente das anteriores de Verissimo.
Tal aperfeiçoamento narrativo é nítido, pois Olhai os Lírios do Campo é uma obra simétrica (24 capítulos divididos igualmente em duas partes) que proporciona ao leitor frequentes voltas ao passado, um dos traços mais marcantes da trilogia já mencionada. Parte-se de um ambiente de insegurança e instabilidade emocional para "flashbacks" que explicam a difícil situação presente (marca que define a primeira parte do romance). A segunda parte vai expondo a busca de Eugênio por Deus, com uma lenta e drástica mudança em sua personalidade. Tal jornada, como é de se esperar, é construída a partir de um profundo viés religioso, um dos aspectos mais definidores da validade eterna do livro.
O título da obra já é uma mostra clara da forte carga teológica que ele traz: é uma referência direta ao chamado Sermão da Montanha, uma das passagens mais famosas de Jesus que, no Evangelho de Mateus, está presente entre os capítulos 5 e 7. Como tudo que advém da Palavra Sagrada, Jesus provoca uma forte reflexão, na qual critica o materialismo em suas mais diversas faces: nas aparências, nas obras de caridade, nos casamentos desprovidos de companheirismo, na falsa fé (é aqui que aparece pela primeira vez o Pai Nosso, proferido por Ele como um modelo de oração) e no papel que Deus possui nessas atitudes. O Sermão sintetiza em 111 versículos como encontrar o Reino de Deus e como se tornar um elemento defensor d'Ele.
Como todo bom livro de Erico, há a presença de uma mulher forte que, se não toma ares de protagonismo, assume um papel essencial à narrativa, muito mais decisivo que o de um simples coadjuvante. Em Olhai os Lírios do Campo, quem assume esse lugar é Olívia, médica que se forma na mesma turma do protagonista. Sua presença tem a função nítida de descarregar toda a carga religiosa do livro, funcionando quase como um "elemento divino" em meio a uma realidade infestada de egoísmo e descrença. Olívia protagoniza na obra inúmeros momentos de sabedoria, que se tornam inesquecíveis ao leitor e exercem grande e pausada influência sobre os rumos tomados por Eugênio.
O protagonista resume, de forma cruel em alguns momentos, muitos dilemas e situações que, tristemente, muitas pessoas assumem e que muitas outras presenciam: o materialismo desmedido, que atropela valores tão simples e universais, como a família e as relações sociais. Um filho que ignora seus pais por vergonha de sua posição social sempre corresponderá a uma atitude que revolta, angustia e, acima de tudo, ensina. Erico Verissimo destaca principalmente essa última característica em várias situações que vão sendo derramadas na narrativa. Este ensinamento se dá com um paralelo perceptível com o já citado Sermão da Montanha: o caminho para a Verdade, para o Reino de Deus e para o Próprio é uma estrada distante de todo e qualquer materialismo. Mas "distante" nesse caso não é um elemento definidor de sua complexidade, muito pelo contrário; Deus está presente em coisas cotidianas, cabendo ao homem individual desenvolver um olhar mais sensível às entrelinhas, montado a partir da convicção de que o mundo foi idealizado de uma forma diferente do que realmente é hoje e que só ele, o homem, é responsável por esse desvio.
O autor conseguiu transpor para a narrativa de uma forma bem precisa a descrença geral da "classe baixa" portoalegrense e nacional da época: o tempo "presente" da obra se passa na época de sua publicação, 1938, com o Brasil recém saindo do golpe do Estado Novo, perpetrado por Getúlio Vargas e que instalou a primeira ditadura do país. Havia, especialmente nas camadas mais pobres, uma grande opressão invisível, ocasionada por uma crescente desigualdade social. Tal aspecto (o abismo existente entre ricos e pobres) serve como pano de fundo para Verissimo destacar a já citada questão do materialismo frente à felicidade e valores familiares. Do mesmo modo, a construção de Olívia revela um tipo feminino totalmente fora dos padrões da época e a sua postura como personagem serve como um contraponto sólido frente aos preconceitos daquele tempo (cujos muitos deles permanecem até hoje).
Olhai os Lírios do Campo é um belíssimo livro, que emociona e sempre emocionará quem o lê. Seu significado, tão amplo e ao mesmo tempo tão simples, dinamiza bem o dualismo entre materialidade e felicidade, fruto de infinitas reflexões que qualquer ser humano já construiu ou presenciou. Suas linhas sempre serão um lembrete de que a verdadeira felicidade só depende de nós e que Deus está e sempre estará mais próximo do que se imagina.