Tiago 26/06/2016
Desejo, hipocrisia e racismo em Bom-Crioulo.
Quando li pela primeira vez este livro, eu devia ter 15 anos. Muita coisa deixei passar, ou não ficaram tão marcadas como ficaram agora depois da releitura. Talvez pela ingenuidade diante do que a literatura poderia fornecer, talvez pela ingenuidade com que eu via os sentimentos, talvez pela ingenuidade com que eu entendia a voluptuosidade por trás do texto do livro. Escrito em 1893, Bom-Crioulo, do cearense Adolfo Caminha, conta a história de Amaro, conhecido por todos como Bom-Crioulo, descrito como um escravo fugido, com um corpo de onde parecia não ter ossos, mas um corpo monumental formado apenas de músculos, que se apaixona profunda, cega e furiosamente por Aleixo, um rapaz, também da classe dos marinheiros, um grumete com seu corpo por vezes evocado como andrógino, de carnes duras e leitosas, tal sua brancura de olhos, corpo e cabelos.
Aleixo e Amaro, são personagens de duas formas distintas de inocência, e são esses tipos distintos que os acompanharão e conduziram as consequências de todos os acontecimentos da trama. Enquanto a de Aleixo é uma inocência de quem, por força de sua aparência branca, européia, pequena, não foi jogado às experiências do corpo e do desejo, sendo apenas um jovenzinho com sonhos de viajar os mares e conhecer o Rio de Janeiro, a inocência de Bom-Crioulo, que desde sua descrição no romance já se mostra profana, com seus músculos, formas e virilidade, não é a inocência de quem não teve a vida corrompida pelo sexo, como também por outras profanações, essas sim reais, como a escravidão e o açoite, mas é a inocência de quem, diante da paixão profunda e instantaneamente sentida pela figura de Aleixo, desde a primeira vez que o viu, se entrega à esperança de uma vez poder viver em paz sentindo no peito o gozo da vida, de algum modo livre para poder amar e sentir seus prazeres correspondidos. Em algumas partes vê-se o paralelo de satisfação que os marinheiros e outros serviçais dos navios de mais alta patente, brancos, sentem em comparação ao ideal de satisfação de Bom-Crioulo. Enquanto a vida nos navios, em alto mar, parece enfadonha aos outros, a Amaro, que viveu parte de sua vida como escravo, tem no mar o ideal de liberdade. Encontrada a liberdade, é preciso saber o que fazer com ela, e Bom-Crioulo o descobre ao se deparar com Aleixo: morariam num quartinho situado num sobrado de uma amiga, D. Carolina, ao chegarem no Rio de Janeiro.
“Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas naturezas de sexo contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas a espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um imã.” (pág. 35)
Também devido aos tipos distintos de inocência de Aleixo e Amaro, nenhum dos dois pode perceber o que se formava entre eles. Bom-Crioulo, por não entender que Aleixo, a figura que ele idealizava como seu companheiro para o resto de sua vida, era um rapaz de 15 anos, virgem e inocente de pretensões sexuais, não enxergava em seu objeto de paixão o risco de um amor não correspondido. E Aleixo, por não entender a profundidade e força dos sentimentos de Amaro, não conseguiria medir as consequências de alimentá-los. A aparente fluidez da sexualidade de Aleixo se mostra na completa passividade com que o personagem se deixa conduzir pelos desejos de Bom-Crioulo. O que Aleixo esperava em troca não era o amor do amigo, mas o cumprimento da promessa de levá-lo até o Rio de Janeiro. Afinal, como próprio questiona o narrador,
“Como é que se compreendia o amor, o desejo da posse animal entre duas pessoas do mesmo sexo, entre dois homens?” (pág. 41)
Essa incompreensão perpassa todo o romance. Desde o não entendimento dos próprios sentimentos de Amaro, que após se ver perdidamente apaixonado por Aleixo, passa a aceitar que em nenhuma outra mulher poderia encontrar a satisfação sexual que um homem poderia lhe proporcionar, até por Aleixo, que cedia às fantasias de Bom-Crioulo (entre elas, temos a soberba cena em que Bom-Crioulo explora o corpo de Aleixo iluminado apenas pela luz de uma vela sobre um pires, gozando de prazer ao explorar as formas do corpo do amado diante da pouca luz e das sombras), e mesmo entre a sociedade retratada por Adolfo Caminha. A homossexualidade era coisa que sempre acontecia, estava em todo lugar, mas ninguém comentava a respeito senão com olhadelas de lado, sorrisos irônicos. Como no caso do comandante, que “não gostava de saias, era homem de gênio esquisito, sem entusiasmo para mulher, preferindo viver a seu modo, lá com a sua gente, com seus marinheiro”, o respeito se mostrava seletivo. Com os homens de alto cargo não era exibido desrespeito, ao menos não explícito, e “havia sempre uma dissimulação respeitosa, um pigarrear malicioso, quando se falava no comandante”.
Até o desenrolar do romance, vemos que Aleixo se deixa seduzir, ainda dentro de sua inocência sexual, aos encantos de D. Carolina, a portuguesa amiga de Bom-Crioulo, que se volta contra o amigo, também cega de paixões pela aparência pura de Aleixo. Aparência esta, mais uma vez ressaltada, tida pura por sua branquitude, seus cabelos lisos, seus olhos claros, tidos como angelicais. Bom-Crioulo, que em todo o romance, é um animal medonho que acorda ao tomar os primeiros goles de aguardente, se torna então cego, como que tomado pelo ódio e pelo amor por ter sido abandonado por Aleixo, e dá como desfecho ao romance o único fim provável para aquele amor: a morte. A morte, aqui, seria inevitável, independente de qual modo ela fosse consumada: se Bom-Crioulo não tivesse tomado satisfação de seu amor por Aleixo, morreria ainda mais por dentro, mais do que já estava morto, derrotado pelo amor que sentia pelo rapaz. Não lhe restava outra coisa: depois de descoberta a liberdade dos navios, seria preciso, como dito, fazer algo com ela, e depois de escolhido que deveria ser ao lado de Aleixo que Bom-Crioulo gozaria sua liberdade, nem o próprio alvo de sua paixão o tiraria este direito. No fim das contas, mesmo matando fisicamente seu amado, Amaro estava entregando-se à desgraça de seu destino já morto desde quando nascera num tempo de escravidão e exploração de seu povo, privado da liberdade e de qualquer sonho.