spoiler visualizarJ.S. Fernandes 20/01/2019
O PLAYER Nº 2 É MAIS FRACO?
A adaptação de “Jogador Nº 1” estreou nos cinemas em março de 2018 em meio a um rebuliço nerd. Um dos trunfos de Ernest Cline, autor da história original, foi utilizar várias referências da cultura pop e dos anos 80 para ambientar sua aventura pipoca. Eu mesma fui ao cinema conferi-la depois de tantas recomendações e, a despeito delas, encontrei uma trama divertida, mas nem por isso memorável ou que puxasse mais do meu interesse.
Este, aliás, foi o motivo de eu não ter ido atrás do livro original.
Pouco depois, entretanto, vi que o autor tinha um segundo título. Descobri isso quando procurava suas referências antes de adquiri-lo na feirinha do livro.
“Armada” entrou para a minha lista de leituras de 2019 e consegui terminá-lo em cinco dias, mas isso porque me impus a uma rotina, não porque a história tenha se mostrado arrebatadora ou sequer simpática. Na verdade, “Armada” me decepcionou muito, isso quando não estava me matando de tédio ou de raiva.
ZONA DE SPOILERS!
A história tem como protagonista o adolescente Zack Lightman, de 18 anos, que faz o perfil clichê: perdeu o pai quando era um bebê devido um acidente, vive com a mãe numa cidade pequena e pacata, tem problemas de temperamento, gosta de videogames e não tem ideia do que fará depois de concluir o ensino médio.
É com uma aula de Zack também que o livro se inicia, mais especificamente quando, entediado, vê um caça Glaive pela janela, uma das naves do jogo que dá nome ao livro.
Foi neste ponto que os meus problemas começaram.
A rotina de Zack ocupa praticamente as cem primeiras páginas, nas quais o leitor tem a sensação de que é lançado de um canto para o outro sem que, de fato, acompanhe algo de relevante. São cem páginas com as mesmas descrições sobre o gênio do protagonista (com direito a um mistério desnecessário sobre o incidente que lhe conferiu o apelido de “Zack Attack”), indas e vindas sobre sua ligação com o pai (que nunca chegou a conhecer de verdade por conta da idade, mas que idealiza pelas lembranças que a mãe guardava no sótão), seu emprego de meio período numa loja de jogos e implicâncias típicas de qualquer filme adolescente.
Comumente, livros do tamanho de “Armada” passam suas primeiras páginas preparando o leitor para a história, e isso não é problema algum quando feito de forma instigante, convidando o leitor a participar das pequenas ocorrências enquanto os personagens e ambientações são estabelecidas. Porém, nada acontece no começo desse romance. As mesmas informações são apresentadas e reapresentadas, como disse anteriormente, até o nível de esgotamento. A história parecia não sair do lugar e começou a me causar frustração, sobretudo quando pareceu que ia desenroscar, mas não desenroscou.
Zack não consegue provocar identificação e sua falta de profundidade o torna chato. Cline deu a impressão de querer pintá-lo como um desajustado cool, mas apenas conseguiu criar um rapaz birrento. A única coisa que Zack sabe fazer é jogar videogame, tem uma preocupação praticamente nula com o futuro e um ar de desapego e falta de propósito que não valida sua posição na trama. Protagonistas problemáticos não são raros e, geralmente, são compensados por coadjuvantes interessantes e vivos, mas todos aqui, sem exceção, também falham, tais como os amigos, o valentão da escola, a ex-namorada, o interesse romântico, o pai que não estava morto, o corpo militar, o dono da loja...
Cline também parece descoordenado quando precisa desenvolver o plot de “Armada”. Se a parte 1 se arrasta até não poder mais, as duas partes posteriores se atropelam, sobretudo a última. Depois de se perguntar sobre a possibilidade da teoria da conspiração do pai estar certa — a de que o governo injetava dinheiro na indústria dos games para preparar a população para uma iminente guerra com uma raça alien, como se fossem simuladores secretos de treinamento militar —, outra nave saída dos jogos estaciona na porta da escola e recruta Zack para uma aliança-agora-não-mais-secreta, a Aliança de Defesa da Terra. Os mesmos europanos da teoria estão para atacar o planeta e dizimar os humanos, validando os palpites do Lightman pai, e apenas Zack e mais um seleto grupo de grandes jogadores (de acordo com os rankings dos games preparatórios, Armada e Terra Firma) poderão se alistar.
Zack apenas se comporta como o garoto problema quando a trama assim exige ou quando o autor se lembra disso, o que o torna contraditório e ainda menos simpático: ele vai de cético a “completamente ok” em um estalar de dedos, e se coloca no meio de uma guerra pois se acha preparado (o que é dito até para convencer o leitor da normalidade da situação) apenas por ter jogado Armada, o que é terrivelmente validado pelo próprio método da Aliança. “A cultura pop veio preparando a sociedade para uma invasão alienígena” é uma das maiores pérolas dessa narrativa.
E, novamente, a contradição de personalidade não atinge apenas Zack. O pai, Xavier, quando se revela vivo (pois o acidente servira para acobertar seu recrutamento na Aliança), oscila entre o de um adulto emocionado, o de um adolescente deslocado e o de um lunático. A mãe, inicialmente estabelecida como uma igual gamer e importante para o filho, é praticamente esquecida e reaparece apenas no final do livro para se reencontrar com o marido e lutar com os europanos com um taco de baseball, anulando a possibilidade de utilizar seu conhecimento para controlar drones, como todos os outros gamers já estavam fazendo. O relacionamento de Zack e Lex é tão pouco desenvolvido que não convence, sem falar nos vários outros coadjuvantes estereotipados que são apresentados no meio da parte 2 para serem mortos rapidamente e sem nenhum clímax. A ex-namorada de Zack é jogada em algumas linhas da história e o valentão da escola só reaparece nas últimas páginas para puxar saco, ambos completamente soltos na trama sem propósito algum.
As sequências de ação são confusas e não conseguem situar o leitor, mais parecendo interessadas em apresentar nomes de naves e algo de tecnologia do que empolgar.
A mesmíssima coisa ocorre com as referências nerds que Cline não encaixa, mas força em cada parágrafo e diálogo. Isso foi uma das coisas que mais me irritou durante o livro todo.
Como comentei, eu não li e não tenho previsão para ler “Jogador Nº 1”, mas encontrei opiniões bem favoráveis a esse recurso nele. Encontrei, igualmente, comparações de quem leu ambos os livros, e parece que foi consenso que as referências foram muito mal-empregadas em “Armada”. Cline as distribui como se fossem um recurso preguiçoso para poupar seu próprio trabalho em descrever comportamentos e locais. Praticamente todos os personagens são nerds e fazem essas piadinhas o tempo todo, o que é irreal até para quem gosta de cultura pop. As menções a séries, jogos e filmes queridos, começam a frustrar, sobretudo quando vêm dos personagens adultos que mais parecem crianças. Até as menções as músicas do Queen começaram a me aporrinhar depois de um tempo e por um momento fiquei com medo de pegar raiva das coisas que gosto por causa do livro, como se ele, uma hora ou outra, fosse me fartar delas. Algumas referências são tão piegas e desnecessárias que provocam um riso amarelo, como tocar “The Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, quando os personagens estão na base “do lado escuro da lua”.
O risco da destruição do planeta não se reflete nos personagens. Não há um desespero ou angústia palpável, inclusive nos civis.
Não é novidade também que o mundo será salvo por Zack de uma maneira clichê e, pelo seu desenvolvimento, não merecedor da honraria: ele é só o famosinho apático que não sabia que era famosinho e que está destinado a salvar o mundo por causa do score do jogo, quer o público goste dele ou não. A invasão dos europanos é justificada por um estudo que os mesmos estavam fazendo com a espécie e deixa algumas observações para um epílogo sem sal e açúcar que se apressa ainda mais do que a parte 3 para terminar.
Vi leitores também lamentando que muito provavelmente as avaliações negativas do livro se deram pelas comparações dele com “Jogador Nº 1”, mas eu, por ter lido “Armada” antes, digo com toda certeza que pelo menos o meu julgamento não foi decorrente de expectativa não alcançada, nem com relação a qualidade da adaptação cinematográfica.
É importante frisar aqui que o problema não são os clichês. Todo mundo gosta de um clichê desde que seja bem executado, e Cline não conseguiu acertar em nenhum dos que se propôs a desenvolver: a trama, o personagem-tipo, a piada de descontração, as referências para aprofundamento e identificação...
Eu queria muito ter gostado desse livro, mas não cheguei lá. “Armada” é uma aventura com clichês mal executados por personagens sem carisma e inverossímeis, com referências forçadíssimas ao longo de uma narrativa desajustada de final decepcionante. E a Leya deixou escapar alguns problemas de revisão, tanto na versão impressa quanto na de e-book, como palavras e pontuações faltantes, mas nada que possa prejudicar uma leitura já tão emperrada.
site: https://araposanalista.blogspot.com/2019/01/a-raposa-resenha-003-armada-de-ernest.html