Luis 08/03/2014
O ponto alto da trilogia.
O jornalista paranaense Laurentino Gomes despontou como autor de ponta em 2008, ao publicar a obra mais significativa dentro da enxurrada de iniciativas que marcavam então os 200 anos da chegada da família real ao Brasil. Editado pela Nova Fronteira, “1808” ficou semanas na lista dos mais vendidos e, assim como anos antes já havia acontecido com Eduardo Bueno, colocou seu nome no panteão dos escritores de “divulgação” científica, no caso, jornalistas que usam do discurso claro e objetivo que é a base da profissão, para deixar a história ao alcance do grande público. Ganhou o Jabuti daquele ano.
Em 2010, seguiu a mesma trilha com “1822”, que, como está de certa forma explícito no título, trata dos eventos relacionados à Independência do Brasil, sequência natural do desembarque da Corte Portuguesa. O sucesso foi semelhante embora, na minha opinião, a obra não tenha a mesma esfera sedutora de seu antecessor.
Com seu mais recente lançamento, “1889” (Globo Livros, 2013), Laurentino fecha o painel da história brasileira no século XIX de forma brilhante : não só disseca a proclamação da República, mas contextualiza fatos, recupera personagens e desfaz mitos perpetuados nos bancos escolares, utilizando com maestria todo o Know How acumulado nos dois best sellers anteriores. Um biscoito finíssimo degustado com prazerosa voracidade.
Uma das questões mais relevantes apontadas pelo jornalista foi justamente o caráter de pouco ou nenhum apelo popular do advento da República. No fundo, o episódio de 15 de novembro foi um golpe de estado, liderado por militares insuflados por civis positivistas e que teve sucesso, muito mais pela fadiga do Império do que uma alentada vontade revolucionária de seus integrantes. A própria pouca disposição política do Imperador, já idoso e doente, incapaz de organizar qualquer tipo de reação ou pôr termo às conspirações que pipocavam por toda a parte, facilitou e muito o trabalho dos que queriam derrubar a Monarquia.
A suprema ironia fica por conta de que , assim como D.Pedro, Deodoro da Fonseca também já era um homem idoso e doente. Ás vésperas do Golpe, estava acamado e ainda não totalmente convencido da necessidade de mudança do regime. Embora fortemente pressionado pelos elementos civis do movimento, entre os quais destacavam-se Benjamin Constant, José do Patrocínio, Quintino Bocaiúva e Silva Jardim, seu pleito inicial era a substituição do Ministério, na época comandado pelo Visconde do Ouro Preto. Tal era a opacidade política do Império que, na vã esperança de sanar a crise, Pedro II dissolveu o ministério mas convocou um dos maiores adversários de Deodoro, Silveira Martins, para chefiar e compor a nova equipe. O Marechal tomou a medida como provocação e cedeu aos apelos dos Republicanos. A Monarquia tombava.
Laurentino detalha com habilidade, temperada por detalhes saborosos, alguns episódios simbólicos do período, como, por exemplo, o famoso baile da Ilha Fiscal, curiosamente a maior , a última (ocorrida a 9 de novembro de 1889) e uma das poucas festas da Corte dos Orleans. Nas páginas de “1889” somos informados do fausto da festa, que consumiu 800 quilos de camarão, 800 latas de lagosta, 80 caixas de champanhe e 10000 litros de cerveja. Alguns aspectos menos nobres do rega bofe também são resgatados , como o alto número de penetras (1500 para 3000 convidados), os excessos estimulados pelo álcool e , já mais para o fim da madrugada, o estado lastimável dos banheiros. O povão assistia a tudo de longe, disputando cada espaço no cais, formando uma autêntica “turma do sereno”.
Os conturbados primeiros anos da República também são abordados, com destaque para as dificuldades do governo provisório, chefiado por Deodoro da proclamação até a promulgação da nova constituição (fevereiro de 1891), com a sua consequente eleição (indireta) como primeiro presidente. Nessa fase as dificuldades naturais da reorganização do país são agravadas pelo pitoresco episódio do “encilhamento”, uma onda especulativa, detonada por medidas econômicas bem intencionadas mas de grande impacto negativo tomadas pelo Ministro da Fazenda. Ninguém mais, ninguém menos que Rui Barbosa. O resultado foi que muitos espertalhões enriqueceram praticamente da noite para o dia, às custas do endividamento do governo e da geração de altos índices inflacionários. Veríamos esse filme ainda várias vezes.
A personalidade difícil do Marechal era outro fator complicador. Como exemplo, Laurentino relata o episódio da saída de Benjamin Constant do Ministério da Guerra, ocorrida no meio de uma reunião com os demais ministros. Após um bate boca sobre a indicação de um apadrinhado de Deodoro para um cargo de segundo escalão, Benjamin, inconformado, dispara : “Não seja tolo ! Não sou mais seu ministro, o senhor é um marechal de papelão. Eu nunca tive medo dos monarcas de carne e osso, quanto mais dos de papelão.”
Como um papelão, o governo do Marechal era pouco resistente e durou só até o final de 1891, quando ele renunciou dando lugar a Floriano Peixoto, uma das figuras mais controvertidas da história do Brasil, que fez um governo polêmico acirrando o clima geral de radicalismo. Por sinal, depois de ler “1889”, me alinho aos que advogam a mudança de nome da capital Catarinense.
O livro avança até o primeiro governo civil, o do paulista Prudente de Morais, derrotado na eleição indireta de 1891.
Laurentino Gomes atingiu o ápice de seu trabalho de compilação histórica. Talvez, ajudado pela maior disponibilidade de fontes ou pela proximidade histórica dos fatos e sua relação mais estreita com o atual cenário político nacional, “1889” tem uma relevância e clareza que superam as iniciativas anteriores e o tornam item essencial aos leigos amantes da história. Assim como no baile fiscal, a República foi proclamada sem que qualquer convite fosse enviado ao principal interessado, o povo. Entender a conjuntura desse acontecimento é essencial para a nossa formação crítica cidadã e , sem dúvida, pode ajudar para que um dia, de forma plena, a liberdade finalmente abra as suas asas sobre nós.