spoiler visualizar@gracarazera2019 19/08/2020
Relato de uma Jovem canadense que sobreviveu ao longo sequestro na Somália
É uma leitura de tirar o fôlego. Livro bem escrito, sem clichês, com realismo impactante.
Escrita veloz, devorei em três dias.
O início demora para entrar no âmago da narrativa que é o sequestro que durou quase 1 ano e 3 meses, totalizando 460 dias. Um "intercâmbio" trágico na carreira de uma repórter iniciante.
Antes desse momento crucial, ela narra o drama de uma filha que testemunha as brigas conjugais dos seus pais sem poder fazer nada, seguido do divórcio dos mesmos e os parceiros violentos e instáveis que começaram a habitar a sua casa, até que ela decide sair de casa aos 19 anos e convive com um namorado, trabalhando como garçonete. Depois de três anos, começa com ele a realizar o sonho de desbravar o mundo, ao vivo e a cores; e não mais através da imaginação, nutrida pela leitura das revistas da National Geografic.
Antes de sair de casa, ainda criança, ela simplesmente suportava e tolerava as tensões domésticas, brincando em caçambas com um vizinho, com que aprendeu a juntar materiais para reciclagem por alguns trocados, numa infância pobre em um bairro simples no Canadá.
Desta forma, comprava as revistas usadas da National Geografic.
Pensar em viagens, lugares diferentes, e em outros modos de vida passou a ser a rota de fuga mental - diante das brigas em casa - a mesma "rota de fuga" que a colocaria na fronteira com a morte aos 27 anos até os 28 anos.
Mas, essa mesma estratégia de fuga mental foi também a sua maior fonte de resistência psicológica, de sanidade mental e resiliência física, ao inaugurar em sua mente, um lugar somente seu, exclusivo, único, um lugar seguro dentro de si, mesmo quando estava sendo invadida por seus sequestradores.
Antes dessa traumática experiência, ela descreve as suas primeiras viagens para a América Latina, depois na África, Afeganistão, Bagdá e junto os seus envolvimentos amorosos e profissionais, a tentativa constante de se adaptar.
O tom da sua análise é - diante de tudo que ela passou - de muita sobriedade, autenticidade e também de uma rara elegância, do início ao fim do livro, da primeira frase à última.
Embora a dor esteja em carne viva, ela consegue focar a atenção no seu raciocínio, nos sentimentos e memórias, além da dor. Ela descreve com rara perspectiva o seu mundo interno, mapeado por memórias e impressões que serão retomadas ao final do livro, quando quase perde a esperança, e em meio ao mais sombrio desespero, recebe um presságio por um lindo pássaro que a visita e a faz mudar de escolha.
Ao mesmo tempo, sua mente analítica, de repórter, calcula distâncias, texturas, costumes, sons, impressões do ambiente, das pessoas locais, seus hábitos, a forma como pensam, suas crenças, suas incongruências, a dicotomia entre certo e errado, a rotina, o calor escaldante, o teto de zinco, as roupas, os ambientes, a textura das paredes, o cheiro de mofo, as fezes das cabras de um alojamento no meio de um povoado próximo à capital da Somália, a vegetação espinhosa, o balde com água marrom e com gosto de ferrugem.
A sensação é de estar sob a sua pele... pensando com a sua mente, vendo com os seus olhos. É um relato comovente. Ela relata experiências extra-corpóreas típicas de extenso sofrimento, e até da near-death-experience, a tentativa de telepatia, o acesso à experiência traumática de seu principal sequestrador, o mais cruel, ao ponto de quase ter compaixão por ele.
Suas descrições são precisas. O leitor não se confunde. Sabe exatamente onde sua mente está focada, onde está a sua rota de fuga.
Os traumas do que passou em mais de um ano de cativeiro ainda marcam os seus dias, misturam e perturbam a sensação de estar de volta no Canadá, de estar junto de sua mãe, da sua casa. A redenção de uma jovem impulsiva, que saiu de casa e tentou buscar um sentido para si em um lugar ainda mais hostil, desumano, imponderável. Pergunto-me sobre a audácia, ousadia, coragem ou imprudência. Ela mesma dá a resposta nas páginas finais.
Nigel, seu ex-namorado australiano, mas que era o seu amigo e colega de trabalho também foi sequestrado, junto com ela, mas não passou pela tortura sofrida por ela.
No início do sequestro, ambos se converteram ao Islamismo, mudaram de nome, na tentativa de se sentirem "menos estranhos", "mais humanos" aos olhos dos sequestradores.
No entanto, foi quase a sua sentença de morte, porque a partir daí ela se tornou mais vulnerável. A mudança cultural não depende de uma única pessoa, mesmo que impetuosa e corajosa e cheia de sonhos, humanidade, sensibilidade. Ela talvez tenha se dado conta quando leu a biografia de Nelson Mandela, preso por 27 anos, que lhe foi entregue por agentes do Consulado Canadense que tentaram negociar a sua libertação. Sua mãe - dentre outros adultos mais velhos e mais experientes - a alertaram dos riscos a que estava se expondo.
Ela com honestidade narrou todos os alertas, mesmo que, com sua "prepotência juvenil" tenha ignorado e seguido adiante, custeando sozinha, como freelancer, o seu próprio trabalho. Não sei ao certo se eu diria que ela foi corajosa, impetuosa ou imprudente. Talvez um pouco de cada?
Atualmente Amanda se recupera do Transtorno de Estresse Pós-Traumático. A sua amígdala foi cruelmente hiperativada, assim como todo o seu corpo. Como neutralizar essas memórias traumáticas? Como tirar a Somália do trágico sequestro torturante a que se submeteu por tanto tempo, quase um ano e meio?
O livro serve de alerta às jovens mulheres que viajam sozinhas, mesmo à trabalho.
Toda jovem deveria ler, antes de sair da casa dos pais.
site: https://www.cmjornal.pt/mundo/detalhe/jornalista-raptada-durante-15-meses-relata-a-experiencia