Sabrina 04/01/2014
1q84 - Uma agradável surpresa
Confesso que Iniciei a leitura de 1q84 de modo totalmente despretensioso, sem acreditar que iria gostar ou mesmo que terminaria o primeiro dos três livros que compõe a obra do autor japonês. O livro me foi indicado por um amigo (não se posso chamar assim) com a sugestão de que ali eu encontraria algumas respostas para questões pessoais, o que de fato aconteceu. Se por um lado a sinopse me dizia que a leitura seria levemente enfadonha, a intuição e a segurança de uma das minhas melhores fontes de boa literatura me fizeram comprar logo os três livro e embarcar na leitura. Então aí vai:
A Obra de Haruki Murakami é extremamente rica e cheia de referências e alegorias, um livro delicioso. Durante as 900 páginas de romance, encontramos referências musicais que vão de sinfonias clássicas a grandes nomes do jazz, pintores famosos como Munch, inúmeras referências literárias como Proust e Orwell (obviamente) – explicitas por meio de citações dos personagens – e outras tantas indiretas que talvez sejam meras especulações minhas, além de alusões a filosofia – que dos nomes citados me lembro agora apenas de Wittgenstein (uma agradável surpresa), alguns conceitos da biologia trabalhados habilmente (bem pontuais e que provavelmte eu tenha notado apenas pelo meu apreço natural por essa área) que são tratados com propriedade, poeticidade e muita desenvoltura, além de inúmeras frases históricas muito bem situadas no contexto do ano de 1q84.
Ao descer pela escada de um viaduto Aomame – Instrutora física e um tipo especial de assassina que mata homens ligados a crimes de violência contra a mulher – passa do ano de 1984, em que vivia, para o ano de 1q84 (q de question mark). A impressão dada é que na verdade o ano de 1q84 é que começa a viver dentro de Aomame, e duas luas passam a pairar no céu, em um mundo onde não é o grande irmão que está à espreita (como na obra de George Orwell), mas sim um povo pequenino que guia as diretrizes de um grupo religioso chamado Sakigake – uma comuna situada entre as montanhas de yamanhashi, onde coisas peculiares acontecem. Um povo pequenino que sai da boca de uma cabra cega morta e constrói uma Crisálida de ar juntamente com Eri Fukada (Fukaeri) – uma menina introspectiva, sensitiva e enigmática – filha do líder religioso do grupo.
Eri foge da comuna em que vivia aos 10 anos de idade, após o contato com o povo pequenino, e então escreve o romance "Crisálida de ar" aos 17, contando o que aconteceu nos dias em que foi castigada em Sakigake, episódio onde teve de ficar presa com uma cabra cega morta por alguns dias. O romance escrito por Fukaeri conta uma história incrível, entretanto, escrita de uma maneira deficiente, uma vez que a menina era disléxica e tinha problemas em formular até mesmo frases curtas.
A obra “Crisálida de ar” cai nas mãos de Komatsu, editor de uma revista literária que promove um prêmio para novos escritores. Ao ler o romance de Fukaeri Komatsu não tem duvidas de que tem grande potencial para vencer o prêmio literário, mas para isso, precisa ser totalmente reescrito. É neste ponto que Tengo Kawana – que junto com Aomame é personagem principal da trama de Murakami – entra na história.
Ghost-writer da Crisálida de ar, Tengo é um professor de matemática em um curso preparatório para o vestibular e também leitor árduo e escritor (frustrado), encontra nos cálculos um mundo onde todas as coisas fluem seguindo as regras lógicas e a beleza euclidiana da matemática, mas é somente quando lê e escreve que Tengo encontra real satizfação. Um homem habilidoso para várias coisas, mas que pela soma de todas as perdas não tem nada de especial - um escritor que tem habilidade e domínio da palavra, mas que no entanto não tem nada a contar, não pelo menos até aceitar reescrever o enigmático romance de Fukaeri, sendo arrastado para este mundo de regras singulares, onde também duas luas pairam no céu.
A história relacionada ao povo pequenino é o que proporciona boa parte do enredo da obra, entretanto, a trama principal ao redor da qual o romance orbita é a história de uma busca de mais de 20 anos entre os dois personagens principais que, ao darem-se as mãos – mesmo sem na vida terem trocado uma palavra sequer – no último dia de aulas na escola primária, sentenciam-se a buscar um pelo outro e a preencher esse vazio que deixaram ao tomar rumos totalmente distintos. Uma história da busca mútua de Tengo e Aomame.
É difícil tentar escrever sobre a trama sem se estender enormemente, uma vez que o livro trata-se de um mosaico onde os vários núcleos do romance se entrelaçam de um modo incrivelmente bem arquitetado. Isso somado às obvias e marcantes características do realismo fantástico - a riqueza sensorial, as distorções do tempo, as inversões entre causa e efeito e o mágico e o cotidiano convivendo naturalmente - leva o leitor a uma leitura de interpretação polissêmica e cheia de singularidades.
Haruki Murakami não de deixa de falar em nenhum momento sobre a solidão, todos os personagens trazidos pela história são de uma solidão e solitude crônicos e de grandes proporções, que no melhor estilo oriental, suprimem em cada ação cotidiana vazia esse ato de caminha só. A personalidade e a cultura japonesa tomadas por influências ocidentais também é algo bem interessante, e – novamente – em quase todos os personagens nota-se um certo laconismo caracteristicamente oriental.
Quanto aos personagens, são poucos e o mergulho psicológico é intenso. Um que me deixa particularmente intrigada é Tamaru, guarda costas da velha da mansão dos Salgueiros em Azabu. Tamaru é um estrangeiro (coreano (?) não tenho certeza) de 40 anos, gay assumido e que ganha alguma relevância somente o final do terceiro livro, sempre muito lacônico e metafórico, mesmo na eminência de matar alguém consegue discutir Jung com sua vítima ou falar do "Em busca do tempo perdido".
Inevitável dizer que termino o último livro me sentindo órfã de uma leitura tão agradável como foi esta, de 45 dias na presença ilustre de Murakami. Religião, ocultismo, sexualidade, amor, solidão, violência e alegoria enleados por um objetivo simples: O reencontro de duas pessoas. A impressão deixada é que tudo o que está além dessa busca é mero incidente do acaso, detalhes que deveriam ser contados para que fosse viável entender a história de Tengo e Aomame, onde o surreal é tão bem implantado que nem mesmo o leitor se espantaria caso, fechando o livro para dar uma breve pausa da leitura, casualmente olhasse para o céu e visse duas luas: uma normal e outra menor, verde e disforme logo ao lado. "Ho ho - disse o ritimista."