Jessica Becker 23/12/2016"Restos Humanos": um romance policial sobre a solidão"Se eu desaparecer, alguém sentirá a minha falta?" "Se as pessoas pararem de olhar para você, você para de existir? Isso quer dizer que você não é mais uma pessoa? Isso quer dizer que você já está morto?"
Na era digital é bastante incomum encontrar pessoas que não sejam adeptas das redes sociais ou da telefonia móvel. Entretanto, o que deveria servir como meio para enriquecer as relações humanas, tendo em vista as várias tecnologias que permitem entrar em contato com o outro a qualquer hora do dia e em qualquer lugar, está sendo usado para substituí-las. Resultado disso, o ser humano está cada vez mais recluso em sua casa e refugiado na sua rede social, onde ele pode manter relações mais superficiais, fingir ser quem quiser, mascarar seus verdadeiros sentimentos. E é justamente sobre os sentimentos da solidão e da dor que vai tratar, de uma maneira peculiar, o livro Restos Humanos, da inglesa Elizabeth Haynes.
Na obra, Annabel Hayer é uma quarentona que vive sozinha com sua gata e trabalha com análise de informações para a polícia. Ao sentir um cheiro muito forte vindo da casa ao lado, ela decide averiguar e encontra o cadáver em avançado estágio de decomposição de uma vizinha que não via há meses. Ninguém, inclusive a própria Annabel, tinha sentido falta dela.
Utilizando os meios de que dispõe, a protagonista faz uma busca nos registros e descobre um número alarmante de casos semelhantes a esse num curto período de tempo, num determinado lugar. Tudo leva a crer que as mortes foram provocadas. Mas, quem provocou esses óbitos? Teriam sido as próprias vítimas? Ou foi uma outra pessoa? Como poderia ter sido qualquer uma dessas hipóteses, levando em consideração que os laudos indicavam morte por causas naturais?
"Ela estava linda à beira da morte, enraizando-se nela, animada com isso. Não sentia dor, raiva ou medo. Ela se aproximava do fim como todos deveriam fazê-lo, com consenso, graça e em perfeita paz." (pág. 106)
Logo de cara ficamos sabendo que Annabel estava certa: há sim o envolvimento de um indivíduo nas mortes. Isso porque Haynes alterna as narrativas entre protagonista, vítimas e vilão, possibilitando ao leitor explorar a mente de cada um dos personagens e ter um melhor entendimento sobre eles.
Annabel e as vítimas são pessoas comuns e desinteressantes, possuem qualidades e defeitos, poderiam ser qualquer um de nós. Vi muitas pessoas reclamando da protagonista por sua passividade no início da trama, algumas até a chamaram de insossa. Mas o fato dela ser passiva serve a um propósito, não foi em vão ou por mera coincidência que Haynes atribuiu isso a ela. Ademais, conheço algumas pessoas apáticas ao nível Annabel, então essa característica trouxe mais veracidade à personagem e, consequentemente, à história.
Já Colin é o legítimo psicopata. Covarde, incapaz de se imaginar no lugar do outro, não sente remorso e não acredita que o que está fazendo seja errado. Seu modus operandi e sua arma são o que há de inovador na literatura policial, e suas vítimas são selecionadas a dedo: pessoas solitárias e reclusas, que estão passando por um momento de dor e não veem mais sentido em viver. Ele se aproxima das vítimas fragilizadas e utiliza a mente delas para matá-las, as convencendo de que não há nada errado em desejar a própria morte, confiscando seus celulares e as instruindo a trancar a porta e a dormir, a deixar-se morrer. Nunca havia visto algo semelhante e achei brilhante essa forma de atuação do assassino. Se é que é possível chamá-lo de assassino.
"O suicídio é algo ativo, algo que se faz; isso exigiria que eu me lançasse num processo envolvendo alguma atividade. Não: o que eu queria era a ausência de atividade. Queria cessar. Queria ficar deitada e imóvel e deixar o mundo seguir em frente." (pág. 194)
Outro ponto a favor do livro escrito por Elizabeth é a falta dos clichês que tanto me incomodam no romance policial. A história se passa na Inglaterra, portanto não há motivos para um policial ou investigador americano estar envolvido. E é assim que permanece a história toda, ao contrário de várias outras obras do gênero em que, apesar de se passar em outro continente, o autor sempre encontra um jeito de incluir um americano nas investigações - nada contra os americanos, apenas não aguento mais o estereótipo de que o detetive americano é o único capaz de solucionar os enigmas! - . Além disso, os policiais não estão lidando com "o pior caso de suas carreiras", nem estão prestes a se aposentar, muito menos retornando depois de um longo período de férias que foram obrigados a tirar graças a um caso mirabolante que foi "o pior caso de suas carreiras" até esse novo surgir. É sério, não aguento mais esses clichês!
Mais um motivo para ler a obra - e outro clichê que não ocorre por aqui - é que não surge um romance entre a personagem principal e alguém que a esteja acompanhando no caso. Existe um personagem masculino que se torna um bom amigo para ela. Mas apenas isso. Um relacionamento amoroso entre eles ficaria muito forçado e Haynes nos poupa disso.
"Eu odeio essa mesquinharia, essa safadeza, o modo como fingem ser amigos o tempo todo e então estraçalham sua presa verbalmente na sua ausência." (pág. 55)
Diante de todos os pontos apresentados, é possível concluir que Restos Humanos traz à tona um tema de grande importância para a sociedade hiperconectada e individualista de hoje. É possível verificar também o quanto é relevante o apoio de amigos e familiares que, com muita paciência e empatia, sejam capazes de identificar um pedido de socorro perdido em meio à tristeza e irritabilidade, como aconteceu em determinada situação na obra. Além da premissa inédita no gênero policial e da psicopatia na dose certa, a obra não peca nos clichês e prende o leitor da primeira até a última página.
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