Helder 09/10/2020Retrato de uma mulher no seculo XIXVillette foi minha primeira experiência com Charlotte Bronte, e apesar de ser uma leitura lenta, tornou-se uma leitura interessante, principalmente pelo retrato da época feito pela autora.
Mas preciso dizer que muitas coisas me irritaram, e imagino que para mulheres alguns momentos de raiva sejam maiores do que os meus.
Muitas pessoas pensam que romances de época são livros com histórias bonitas e românticas onde mulheres vivem grandes amores, mas aqui temos algo completamente diferente, o que pode frustrar muitos leitores.
O livro foi publicado em 1853 um pouco antes de Charlotte Bronte falecer e muitos dizem que o livro tem muitos fatos autobiográficos da autora.
Neste livro ela não quis contar uma história de amor, mas sim fazer um relato sobre o que era ser mulher na época em que vivia.
Villette conta a história de Lucy Snowe, uma moça solitária, que tenta viver bem em um período onde para uma mulher ser feliz ela tinha que ser bela ou rica, e casada, coisas que não acontecem na sua vida, já que Lucy não tem família, dote, nem características físicas que chamem atenção.
Quando conhecemos Lucy, ela é uma jovem de quase 18 anos que está na casa de sua madrinha. Ali ela conhece o filho desta madrinha e uma menina chamada Paulina.
Vi algumas resenhas citando Lucy como uma personagem empoderada, mas discordo completamente disso. Para mim Lucy é uma sobrevivente.
Para mim, muitas vezes Lucy me pareceu uma sombra, ou uma câmera que acompanha a ação, mas pouco participa desta, e isso me confundia um pouco como leitor, pois buscava seu protagonismo e muitas vezes apareciam fatos no texto que para mim eram completamente sem sentido e desnecessários.
Mas doce engano, pois com o passar do livro, a autora vai retomando todos os personagens e mostrando suas devidas importâncias na vida de Lucy.
Após este tempo na casa da madrinha, ela volta para sua cidade natal na Inglaterra onde trabalha como acompanhante de uma idosa. Com a morte desta, ela recebe um dinheiro, e como não tem nenhuma família nem amigos que a prendam ali, ela decide ir para Londres, porém ao chegar em Londres ela resolve dar um passo maior: Pegar um navio e ir para o continente.
Neste navio ela conhece uma menina muito bonita que lhe conta que está indo estudar em Villette, e assim Lucy decide que aquele será seu destino.
Imagino que na época do lançamento do livro esta tenha sido uma decisão surpreendente, pois fica claro no livro que as mulheres dependiam totalmente dos homens (pais e maridos), tornando a atitude de Lucy um dos primeiros exemplos de feminismo na literatura.
Desta maneira ela chega a Villette, onde encontra um novo problema: O idioma.
Villette é uma cidade fictícia inspirada pela cidade de Bruxelas, onde Miss Bronte realmente viveu durante um tempo de sua vida, estudando e trabalhando e a língua ali era francês.
No fim, aquilo que era um problema, torna-se um trunfo para ela, já que consegue vaga como governanta em uma casa onde a dona procura uma pessoa que ensine inglês para suas filhas.
Começam aí as várias coincidências do livro.
A casa onde ela chega é a escola que a menina lhe falara no navio e pertence a Madame Beck, uma mulher desconfiada que cuida de seus objetivos pessoais com unhas e dentes.
E é ali que Lucy vai começar a se encontrar, mas nunca sem enfrentar diversos percalços.
Logo ela consegue uma vaga como professora de inglês nesta escola, mas nem tendo um emprego ela consegue deixar de viver como uma sombra e isso muitas vezes me incomodou na narrativa, pois eu tinha vontade de dar uma chacoalhada naquela mulher.
Ela parece assumir que as boas coisas do mundo não são para ela, e nunca dá um passo a frente, sempre aceitando as migalhas que as pessoas vão lhe oferecendo.
E são diversas pessoas que vão passando por sua vida, mas é como se Lucy vivesse sempre na borda, nunca sendo protagonista das coisas. É difícil descrever, mas pensando agora, Lucy me lembrou um pouco Jean Batiste de Grenouille do livro o Perfume, não pelo lado psicopata, algo que aqui não existe, mas por não ter cheiro.
Sim, para mim Lucy era uma pessoa sem cheiro. As pessoas a viam, mas não a notavam, não sentiam sua falta, e isso me deixou triste em diversas passagens do livro.
Ela parece sempre que vai se impor, mas isso nunca acontece, e as coisas vão passando por ela, sem se fixarem, tornando sua vida extremamente vazia.
Todos parecem ser bons com ela, mas no fundo ninguém precisa dela, e eu acho que sentir-se necessário é o que move o ser humano.
Nas coincidências do livro, Lucy volta a se encontrar com a menina bonita do navio, com sua madrinha, o filho e aquela pequena menina do início do livro, e estes encontros trazem novas expectativas , porem sempre novas frustrações, já que as vezes Lucy ousa sonhar um pouco, mas parece que a vida sempre lhe toma o que ela achava que ia conseguir, e ela se conforma. Simples assim.
Até que aparece um personagem que a vê, mas infelizmente este personagem é tão insuportável que só me vinha um ditado a cabeça:
“Antes só do que mal acompanhado”.
É um homem arrogante, mimado e cheio de vícios de criação, além de um lado de fanatismo religioso difícil de engolir, mas que Charlotte usa muito bem para mostrar a prepotência da igreja católica sobre outras religiões.
Porém é fácil entender que no meio de tanta carência, qualquer foco de atenção é uma luz. E é ali que aparentemente ela encontra a paz que precisa para viver, ou simplesmente sobreviver.
Neste ponto lembrei um pouco de Macabea e seu Olimpico de Jesus.
Lucy, não é sonsa como Macabea. Ela só acredita pouco em si e para mim se contenta com pouco.
Mas eu digo hoje isso em 2020, onde a confiança da mulher em si está muito maior. Como julgar as atitudes de Lucy em 1850?
O final do livro me surpreendeu, pois Charlotte deixa abertas possibilidades para a nossa narradora.
No meu final, tudo deu certo, pois eu preciso acreditar nisso após 720 páginas, porém pelo histórico de Lucy, podemos ainda duvidar que desta vez ela tenha encontrado seu lugar no mundo.
Por fim, eu acho um livro interessante por mostrar a foto de uma época com todos os preconceitos e conceitos envolvidos.
E fico feliz em ver o quanto o mundo evoluiu, por mais que muitas vezes ainda parecemos estar numa era medieval.
Sim, as coisas já foram piores!