spoiler visualizarHelsing 04/03/2022
Nota
"Eu odeio a minha mão esquerda. Odeio olhar para ela. Odeio quando ela trava e treme e me lembra que eu perdi minha identidade. Mas ainda assim olho para ela, porque ela também me lembra que eu vou achar o garoto que tirou tudo o que eu tinha. Vou matar o garoto que me matou, e farei isso com a minha mão esquerda."
"Até que morrer não é tão ruim assim depois que já aconteceu uma vez.
E eu já morri.
Não tenho mais medo da morte.
Tenho medo de todo o resto."
"O anonimato é legal. Pergunto-me quanto tempo irá durar."
"Meu nome é Nastya Kashnikov.
Eu era uma pianista prodígio que não deveria estar nem perto de uma aula de Introdução à Música.
Fui assassinada há dois anos e meio."
"Às vezes até canto, mas reservo essa atividade para os dias em que me odeio tanto que tenho vontade de me machucar."
"Eu conheço este lugar."
"Não digo obrigada. Ele não diz boa-noite, mas fala:
? Você está diferente.
E eu bato a porta na cara dele."
"Penso no fato de que ele me deixou dormir no sofá quando Drew obviamente me largou lá. Ele segurou meu cabelo, limpou uma quantidade colossal de vômito, me trouxe um analgésico e me obrigou a beber um litro de água para não ficar desidratada. Não tenho nada de radiante nem gracioso, mas, depois dessa noite, ele conquistou o direito de debochar de mim o quanto quiser."
"Eu não digo uma palavra sequer a outro ser humano há 452 dias. Escrevo minhas três páginas e meia, guardo meu caderno de redação e me deito na cama, sabendo quanto cheguei perto de não completar 453."
"Escuto seus movimentos enquanto continuo de costas, e, quando me viro, ela está sentada numa das bancadas do outro lado da garagem. Simplesmente se instalou lá e ficou à vontade.
Certo.
Ela sentada na garagem, me observando, está me dando nos nervos. Porque é isso o que ela está fazendo agora. Fica me olhando e nem tenta disfarçar. Eu meio que quero gritar para ela cair fora, mas também meio que quero que fique. O que faz de mim o idiota que eu sou."
"É um trabalho silencioso, então posso fazê-lo à noite, porque preciso me manter ocupado ou vou acabar numa competição com essa garota para ver quem pisca primeiro, numa tentativa de ler a mente dela ou algo assim."
"Foi só quando ela saiu da sala e tudo se acalmou que repassei toda a cena na cabeça. Só então percebo que, mesmo quando o martelo desceu, mesmo quando toda a força da martelada atingiu sua mão e a dor deve ter sido insuportável, ela não emitiu um ruído sequer.
Você só pode estar de sacanagem."
"O silêncio persiste. Não sei por quanto tempo ela planeja ficar aqui, pairando, observando. É como ter um fantasma na garagem. Sinto como se estivesse sendo assombrado."
"Então não fiz as coisas normais que deveria fazer com 15 e 16 anos. Na idade em que a maioria das pessoas tenta descobrir quem é, eu me esforçava para entender por que eu existia."
"? Por que você tem tantas serras?
Seria de se pensar que neste momento eu me virasse para ela rápido, em alguma espécie de choque, mas é quase como se eu estivesse esperando que ela falasse comigo desde o dia em que nos conhecemos e só tivesse tentado imaginar o que ela iria dizer. "
"? Você não é como eu esperava que fosse.
Nossos olhares se cruzam e ela realmente parece um pouco surpresa e muito curiosa, mas acho que tenta disfarçar.
? Como você esperava que eu fosse?
? Caladinha."
"Minha menina linda. Você voltou para nós.
Mas ela estava enganada."
"Meus pais me puseram para fazer terapia antes mesmo de eu sair do hospital, o que é a medida recomendada quando o diabo coloca as mãos na sua filha de 15 anos e o além a cospe de volta à vida.
Fiquei na terapia por tempo suficiente para entender que nada do que me aconteceu foi minha culpa. Não fiz nada para causar ou merecer aquilo. Mas isso só piora tudo. Talvez eu não me sinta culpada pelo que aconteceu, mas, quando nos dizem que algo foi completamente aleatório, também estão nos dizendo outra coisa: que nada do que fizermos importa. Não faz diferença se fazemos tudo certo, se nos vestimos do jeito apropriado e agimos da maneira correta e seguimos todas as regras, porque o mal vai nos encontrar mesmo assim. O mal é muito engenhoso."
"Não preciso que a minha memória volte. É a minha memória que me inferniza. Eu me lembro de tudo.
De cada detalhe.
Todas as noites.
Nos últimos 473 dias."
"Por que precisa de tantos desenhos para capturar um rosto?
? Não estou tentando capturar um rosto. Estou tentando capturar todos os rostos. ? Ele para e me olha para ver se estou entendendo. ? A maioria das pessoas tem mais de um. Você tem mais do que a maioria.
Ele faz isso com rostos, só que não tenta encontrar a verdade neles; ele extrai a verdade de cada um. Ele procura a minha verdade. Fico pensando se vai conseguir encontrá-la e, se conseguir, que talvez possa me mostrar onde ela está."
"Procuro algum lugar na bancada onde eu possa subir para sentar, mas não encontro. Cada centímetro da mesa de trabalho está ocupado. Pilhas de restos de madeira, ferramentas diversas e caixas cobrindo tudo. Nunca fica tão entulhado aqui. Do jeito que Josh é meticuloso, isso significa que essa bagunça é proposital."
"Ele fez tudo isso de propósito. Não deixou nenhum lugar livre para eu me sentar na bancada, para eu ser obrigada a notá-la. Porque a cadeira foi feita para mim.
? É uma cadeira. Pare de ficar analisando demais. Não vou vender nem dar para outra pessoa. Eu fiz para você. É sua.
? Além do mais, já coloquei seu nome nela.
Então vejo e é inconfundível. Ali, na parte de baixo do assento, há uma flor e um sol gravados.
Naquele momento, eu sei o que ele me deu, e não é uma cadeira. É um convite, uma mensagem de boas-vindas, a confirmação de que sou aceita aqui. Ele não me deu algo para me sentar. Ele me deu um lugar."
" A luz do dia não nos protege de nada. Coisas ruins acontecem a qualquer momento. Não esperam até depois do jantar."
"? Como foi que você aprendeu a cozinhar?
Hoje à noite as pernas balançam da bancada da minha cozinha, não da de trabalho. Agora ela sempre janta aqui. Às vezes ajuda. Às vezes olha. Sempre fala."
"Eu a vejo examinando a mão e tento imaginar o que ela quer dizer com ?destruída?. Olhando de perto, dá para perceber que os dedos não são lá muito retos e às vezes a mão tem uns espasmos ou solta as coisas. Quando isso acontece, nós dois fingimos que não notamos. E tem as cicatrizes, algumas mais claras do que outras. Mas eu conheço todas elas."
"? As pessoas acreditam em Deus porque não acreditam em si mesmas. Precisam depender de algo ou culpar alguém, em vez de assumir a responsabilidade pela própria merda... Bosta, excremento, sujeira, erros, falhas."
"? Você devia vir ? diz ele para mim. ? Posso arranjar alguém pra você.
? Arranje alguém pra você. Eu estou bem assim.
? É, nós sabemos. ? Ele olha para Nastya. ? Eu também estou bem assim. Tenho minha própria Flor do Dia para me deixar quentinho.
? Se me chamar de Flor do Dia de novo, eu mato você, seu [*****]."
"? E você não vai continuar? ? Não está surpresa nem curiosa. Parece decepcionada.
Não lido muito bem com a ideia de decepcionar alguém ? especialmente ela. Vou continuar correndo, se é isso que ela quer."
"O lance dela é fugir. O meu é me esconder."
"Tive que sair correndo ? sem trocadilho. Não podia confiar em mim mesma sabendo que você estava molhado e pelado bem aqui do lado. Não quis dar chance ao azar. A gente se vê amanhã.
P.s.: Dobrei a sua roupa lavada. Não se preocupe,não toquei nas suas calcinhas."
"_ligacao com a mãe dela _
Desligo o telefone antes de ela ter tempo de dizer que me ama. Não porque eu não queira ouvi-la dizer isso, mas porque não quero que ela fique sem escutar resposta alguma."
"? Não tem por que você continuar se escondendo no banheiro. Pode se esconder aqui. Eu tenho um campo de força, sabia? ? Ele baixa a voz ao dizer isso, como se estivesse me contando um segredo, e então dá um microssorriso que ninguém além de mim perceberia, antes de voltar a ficar sério e dizer baixinho: ? Ninguém vai incomodar você.
Então eu me sento. Ele fica sobre o encosto e eu no assento. Não nos tocamos. Não nos falamos. Nem estamos à altura dos olhos um do outro. E hoje, pela primeira vez desde que cheguei a esta escola, percebo que o pátio não é tão horrível assim."
? Meu avô morreu ? digo.
? Se eu tivesse um telescópio, mostraria o Mar da Tranquilidade para você. ? Ela aponta para o céu. ? Está vendo? Ali na Lua. Não dá para ver direito daqui."
"? É por isso que você tem uma foto da Lua no seu quarto?.
? Você notou?
? Era a única coisa na parede. Pensei que você devia curtir astronomia.
? Não. Só deixo lá para me lembrar que é a maior bobagem. O nome dá a entender que se trata de um lugar lindo e cheio de paz. Tipo para onde a gente desejaria ir depois de morrer. Silencioso, com água por todos os lados. Um lugar que nos engoliria e nos aceitaria de qualquer forma. Eu tinha toda essa imagem na cabeça.
? Não parece ruim ir parar num lugar assim.
? Não seria, se ele fosse real. Só que não é. Nem é um mar. É só uma sombra grande e escura na Lua. O nome é uma mentira. Não quer dizer nada."
? Amar você demais seria imperdoável?.
? Obrigações demais. As pessoas gostam de dizer que o amor é incondicional, mas isso não é verdade. E mesmo que fosse incondicional, o amor nunca é de graça. Sempre vem acompanhado de uma expectativa. Todo mundo sempre quer algo em troca. Tipo, querem que você seja feliz, ou o que for, e isso nos torna automaticamente responsáveis pela felicidade dos outros, porque eles não serão felizes a menos que você também seja. Você tem que ser quem eles pensam que tem que ser e se sentir do jeito que eles pensam que tem que se sentir, porque eles amam você. E quando você não consegue dar o que eles querem, eles ficam infelizes, e aí você também fica infeliz e todo mundo fica infeliz. Eu só não quero ter essa responsabilidade.
? Então você prefere não ser amada por ninguém?"
"Eu só sabia que, de repente, tinha respostas. Tinha todas as respostas para todas as perguntas, mas não queria dizê-las em voz alta. Não queria soltá-las no mundo e torná-las reais. Não queria admitir que aquelas coisas aconteceram e que tinha sido comigo. Então escolhi o silêncio e todas as suas consequências porque eu não sabia mentir bem o suficiente para poder falar.
Sempre planejei contar a verdade. Eu só precisava de um tempo. Precisava ter a chance de encontrar as palavras certas e a coragem para dizê-las. Não fiz um voto de silêncio. Não fiquei muda subitamente. Apenas não encontrava as palavras. E ainda não encontro. Nunca as encontrei."
"Pego o baldinho vazio e o balanço para a frente e para trás entre nós dois enquanto caminhamos até o estacionamento, deixando o chafariz, minha pulseira, uma infinidade de moedas e duas meninas sorridentes para trás."
"Eu poderia ter enfiado os dedos nos olhos dele, esmagado sua traqueia, lhe dado um tapa nas orelhas ou uma joelhada na virilha ou aplicado o padrão clássico de gritar e sair correndo a toda velocidade. Não fiz nada disso. Sabe o que eu fiz? Sorri e disse oi. Porque eu era educada. E idiota."
"Pensei em mandar uma mensagem para Josh cancelando o jantar pelo menos meia dúzia de vezes hoje. Por fim, escrevi dizendo que não poderia ir porque não tinha nada para vestir. Ele respondeu imediatamente:
Nada ta otimo vejo vc as 4"
"Não quero parecer Nastya Kashnikov hoje. Não quero ser uma [*****] russa. Mas também não quero parecer Emilia. Talvez hoje à noite eu só queira ser outra pessoa. Uma terceira garota que ainda não conheci."
"Não tinha ninguém para me salvar da outra vez e, se acabar precisando ser salva de novo, eu mesma faço isso, muito obrigada."
"Eu queria conversar com você. Ele diz como se fosse a resposta mais óbvia do mundo. Ele dirigiu duas horas até um lugar em que não houvesse ninguém que nos conhecesse, só para podermos conversar durante o jantar. Quero rir e chorar e abraçá-lo até sufocar. Em vez disso, eu o beijo."
"Bastam três notas para eu reconhecer a sonata de Haydn. É a que eu sei de cor. A que pratiquei mil vezes para tocar na audição da escola naquele dia. A que acabou se tornando a música-tema do meu assassinato. É o que vamos ouvir no jantar de domingo: a trilha sonora da minha morte."
"Estou examinando minhas mãos, porque quero que estejam bonitas, sem unhas lascadas, e aí aparece um garoto na minha frente. Ele sorri, mas tem algo de errado. Algo de errado em seus olhos. Mas eu sorrio e digo oi e passo por ele. E aí sua mão agarra meu braço com tanta força que dói e eu me viro mas não consigo dizer nada porque ele me acerta no rosto e de repente estou de cara no chão e ele está me arrastando para algum lugar. Então não estou mais no chão porque ele me levanta pelos cabelos. Ele diz que a culpa é minha. Ele me chama de [*****] russa.
O sol bate nele e ele parece mudar de cor e é tão lindo que quero segurá-lo. Se eu conseguir alcançá-lo, tudo vai ficar bem.
Vejo suas botas perto da minha mão. E aí não vejo mais nada, porque tudo está preto e não sinto meu corpo. A última coisa que escuto é o som dos ossos da minha mão sendo esmagados e aí não há mais nada.
? Nastya?
? Nastya?
Não conheço esse nome."
"? Você estava acordada, mas era como se não estivesse ali. ? Ele me puxa para perto dele, beija a cicatriz na minha testa, passa o braço ao meu redor com força, puxa a minha cabeça para seu peito e aperta meu corpo junto ao dele. ? Eu fiquei apavorado e você não vai me dizer por que isso aconteceu.
Eu preciso dizer alguma coisa a ele, então digo o que sei que é verdade:
? Às vezes eu esqueço como se respira."
"Eu gosto das suas mãos ? prossegue, sem tirar os olhos delas. ? Às vezes eu penso que são a única coisa real em você."
"? Só para você saber ? eu lhe informo ?, um dia eu vou me cansar de dividir o seu afeto com aquela mesa de centro e vou obrigá-lo a escolher.
? Só para você saber ? ele me imita ?, eu cortaria aquela mesa em pedaços e a usaria como lenha antes de ter que escolher entre qualquer coisa e você."
"? Me conte como conseguiu essa cicatriz.
A pergunta vem do nada e de toda parte.
? Não ? sussurro.
Ele não consegue me ouvir mas sabe o que eu disse. O pior é que uma parte de mim está começando a querer contar tudo a ele e isso me deixa morrendo de medo. Josh me faz sentir segura, algo que nunca pensei que voltaria a acontecer."
"Olho para ela porque quero ver sua cara ao abrir a caixa. Sei que é um presente idiota, provavelmente não é algo que as garotas queiram ganhar. De qualquer forma, não sou um grande expert nesses assuntos.
Mas aí vejo que talvez até seja, porque seu rosto se ilumina ao ver o presente.
? Você comprou botas para mim? ? pergunta ela como se tivesse ganhado diamantes."
" Ela grita comigo se eu faço algo sem explicar, porque, mesmo que ela não possa fazer sozinha, quer ao menos entender como é feito.
Minha produtividade não é a mesma de antes, mas acho que vale a pena, pois o fato de ela ficar me dando ordens na minha garagem com um martelo na mão é muito atraente."
"Não nos tornamos normais; nos tornamos previsíveis. E não apenas para todo mundo na escola. Eu também acho previsível estarmos juntos. Conto com ela. Conto com ela aqui. Conto com ela em casa. Conto com ela na minha vida.
E é apavorante."
"Quando Clay termina, retiro a fotografia que está há dias guardada na minha mochila e a entrego a ele. Então pego uma folha de papel e escrevo o que quero."
"Eu não me lembrava do que tinha acontecido comigo até mais de um ano após o ocorrido. Durante dias, depois semanas, depois meses, eu sabia o mesmo que todo mundo.
As pessoas nunca se cansam de histórias trágicas sobre garotinhas bonitas. Fui um bom entretenimento por algum tempo, principalmente durante o período do ela vai sobreviver ou não, quando não sabiam se eu conseguiria ficar viva.
Eu sabia que, quando cheguei ao hospital, fui levada imediatamente para a cirurgia e meu coração ficou parado durante 96 segundos, até que conseguissem reanimá-lo.
Eu sabia o que tinha acontecido comigo por causa da extensa lista de ferimentos. Durante meses, foi assim que me senti. Uma lista de ferimentos. Uma soma de dores. Meu corpo inteiro doía.
Um dia, ouvi um dos meus muitos médicos conversando com um detetive de polícia.
Já pegaram aquele monstro?, perguntou ele. O detetive respondeu que não. Deveriam enforcar o cara assim que o pegassem. Ele acabou com essa pobre menina. Imaginei que ele estivesse certo, porque era exatamente assim que me sentia e, quando você ouve seu médico dizer que está arruinada, sempre pensa que ele deve saber do que está falando."
"Estou acostumada com a dor, e esta não é tão ruim. É com este olhar que não estou acostumada: assombro, confusão, fascinação e ? por favor, por favor, por favor ? que não seja amor."
"? Sai agora da minha casa.
? Eu falei para você não me amar ? sussurra ela, quase como se falasse consigo mesma.
? Acredite, Nastya. Não amo você.
Ela sai e fecha a porta sem fazer barulho.
É a primeira vez que eu digo o nome dela."
"Agora tudo é um inferno e eu mereço. Suporto a dor se eu mesma a escolhi."
"Eu poderia fingir que não olho para ele, que tenho determinação e amor-próprio suficientes para não deixá-lo me flagrar observando-o, mas não tenho essa disciplina. Todo dia digo que não vou olhar, mas olho mesmo assim. A única coisa boa é que ele nunca me flagra. Ele nunca olha para mim. E nem deveria. Eu não o mereço.
O mundo deveria estar cheio de Josh Bennetts. Mas não está. Eu tinha o único.
E o joguei fora."
" Estou com saudade dele hoje. Fico com saudade dele todo dia. À noite fui à loja de material de construção só para caminhar pelos corredores de madeiras e tentar respirar.
Volto a me esconder no banheiro na hora do almoço. Clay voltou a deixar a porta aberta para mim, mas fingimos que isso não significa nada.
Minhas mãos estão voltando a ser macias.
Na semana que vem, Josh completa 18 anos."
"A imagem na moldura é uma reprodução perfeita em carvão, idêntica à foto, só que maior. Embora esteja em preto e branco, vejo os olhos da minha mãe se enrugando com o sorriso e minha irmã respirando. Por um instante, penso que estão vivas. Sem dúvida é obra de Clay. E só há uma pessoa que poderia ter dado esta fotografia a ele. Mas ela não está aqui, porque também me deixou."
"Faz cinco semanas que ela foi embora da minha casa. Comecei a contar no segundo em que a porta se fechou. Não sei quando vou parar"
"Não arruinei uma parte de mim quando dormi com ele, por mais que eu tenha destruído tudo depois. Eu sabia que não era verdade quando disse aquilo, e ainda sei. Não me arrependo de nenhum minuto que passei com Josh. Só me arrependo de cada segundo depois. Me arrependo de despedaçar seu coração. Me arrependo de mandar nós dois direto para o inferno."
"Estou apavorada, como se fosse um pesadelo. Ele está rindo, como se fosse uma brincadeira.
Não me surpreende que me pôr nesta situação imbecil seja o que faltava para eu finalmente decidir não terminar de incinerar o que restou da minha vida. Sou uma completa idiota. Talvez o carma só esteja tentando me dar o que eu disse que queria. Mas nunca quis de verdade ? a ruína total e definitiva.
Antes que eu consiga registrar o que está acontecendo, o punho de Drew está na cara de Kevin e ele cai de novo. Olho para Drew, que está tremendo. Há algo de muito errado com a imagem de Drew Leighton batendo em alguém. Ele deve ser alegre e irreverente e livre de todas as preocupações do mundo. Não há um pingo de violência nele. Eu preferia que não tivesse feito isto. Que não tivesse visto isto, porque, apesar de parecer loucura, sinto que ele acabou de perder a inocência.
Meu rosto está inchado e sangrando, mas não ligo. Pela primeira vez em muito tempo, eu escolho não jogar minha vida na sarjeta, mas não consigo ficar feliz comigo mesma por causa disso, pois tomei a decisão com cinco minutos de atraso.
Drew não me diz aonde vamos. Não pergunta aonde quero ir. Ele me leva para onde preciso ir ? e talvez ele também. Ele me leva para a casa de Josh.
A garagem está fechada quando chegamos, mas Drew e eu temos a chave. Ele gira a sua na fechadura e empurra a porta para mim. Eu entro e Drew me segue. Na escuridão do hall de entrada, levamos um instante para processar o que estamos ouvindo.
Então, desejo por mil moedas que não tivéssemos a chave."
"Ela não me perdoa, mas tudo bem. Eu também não sei se a perdoo."
"-Quer saber? Não consigo. Não consigo entender você e estou de saco cheio de tentar."
"? Eu só queria alguém que olhasse para mim e não quisesse ver outra pessoa.
? Quem olha para você desse jeito?
Não imagino ninguém que seja capaz de olhar para ela e querer ver qualquer outra coisa.
? Todo mundo que me ama.
? E quem eles querem ver?
? Uma garota que já morreu."
"? A narradora não respeita a beleza da vida e o mundo à sua volta, que acaba esmagando-a, acabando com ela, e depois de morrer percebe tudo o que não soube valorizar e que estava bem na sua frente, mas ela não viu quando estava viva. Ela implora por outra chance de viver, para poder apreciar as coisas desta vez.
? E ela ganha essa chance? ? pergunta ela para Josh.
? Ganha."
"Não sei ao certo quanto tempo ficamos sentados na caminhonete de Josh, de mãos dadas, cercados pela escuridão e por arrependimentos silenciosos. Mas foi o suficiente para saber que vale mais a pena me agarrar à mão dele do que a quaisquer histórias ou segredos no mundo."
"Porque ele está aqui.
É o rosto dele. E não é um pesadelo. Não é uma memória. Ele está aqui e é real e está olhando para mim. E eu estou olhando para ele. Estou no meio de um momento que temi e pelo qual esperei desde o dia em que me lembrei do que ele fez comigo.
O nome na parede ao lado das pinturas é Aidan Richter, a escola é de uma cidade próxima de Brighton e o rosto diante de mim pertence ao garoto que me matou."
"Ele me conta sobre o irmão. E a garota por quem seu irmão estava apaixonado e que estudava na mesma escola que eu. A garota que terminou com ele e a quem Aidan culpou por seu suicídio, embora hoje saiba que não foi por causa dela. A garota russa. A [*****] russa. A garota que ele saiu para procurar naquele dia. A garota que ele viu quando me viu. Só porque eu estava lá."
"Ele matou a Menina Pianista de Brighton, mesmo que não tenha matado Emilia Ward."
"O aluno do ensino médio Aidan Richter foi preso esta tarde após confessar a brutal agressão e tentativa de homicídio, em 2009, de Emilia Ward, então com 15 anos, carinhosamente conhecida pelos habitantes locais como a Menina Pianista de Brighton. O crime permaneceu quase três anos sem solução, até que Richter, que tinha apenas 16 anos quando o ataque ocorreu, chegou com seus pais e o advogado e se entregou à polícia hoje. "
"Se ela foi para Brighton atrás de Richter, isso foi antes de ele confessar. E se ela estava em Brighton às onze e ele se entregou às três e meia, o que aconteceu nesse meio-tempo?"
"Todos só olham para ela, como se tentassem se assegurar de que está mesmo aqui. Ela olha para todos nós, seus olhos passando por cada rosto abatido, até chegar no meu. Então, não há mais nada além disso. Não consigo me mexer, mas ela sim. De repente está bem na minha frente e sua mãe diz Emilia e Asher diz Em e seu pai diz Milly e Drew diz Nastya e eu digo Flor do Dia, todos ao mesmo tempo... E então ela desmorona.
Todos os pedaços de todas essas garotas saem voando pelos ares e eu fico segurando o único que restou."
"É como ver o vídeo de uma explosão de trás para a frente, cada estilhaço voltando a seu lugar, como se nada tivesse acontecido."
"? Como você a chamou? ? pergunta ela, mas acho que essa não é a verdadeira pergunta.
? Flor do Dia ? digo, e ela sorri como quem pensa que é perfeito, talvez a única pessoa além de mim que acredita nisso.
? O que ela é para você? ? pergunta, sussurrando.
Essa é a verdadeira pergunta. E eu sei qual é a resposta, apesar de não saber o que dizer.
A voz abafada de Drew surge do chão antes que eu tenha tempo de responder:
? Família.
E ele tem razão."
"Eu me despeço na frente da casa dela dois dias depois de chegar aqui. Dois dias depois de saber toda a verdade. Dois dias depois de tê-la de volta. Dois dias para aceitar o fato de que vou perdê-la de novo."
"? Estou indo embora hoje "
"Tem que existir um final mais feliz do que este. Tem que haver uma história melhor. Porque a gente merece. Você merece. Mesmo que não termine com você voltando para mim no final."
"Hoje ela vai se despedir de mim e preciso deixá-la, e nenhum de nós dois sabe se um dia ela vai voltar."
"Não sei como dizer isto ? depois de todo esse tempo, nem sei se sou capaz ?, mas preciso quebrar sua última regra. Porque, se ela não souber de mais nada, preciso que saiba apenas de uma coisa.
? Eu te amo, Flor do Dia ? digo, antes de perder a coragem. ? E não estou nem aí se você quer que eu ame você ou não."
" Quando voltei a Brighton para ir atrás dele, não tive mais tanta certeza de que seria capaz. Então fiquei sentada na terra. Embaixo das árvores. No exato lugar onde ele me atacou. E esperei. Esperei pelas palavras. Esperei pela coragem. Esperei para decidir. Mas esperei demais, e ele tirou isso de mim também."
*-Ele tirou de você a [*****] do piano, Flor do Dia. Não tirou tudo. Olhe para a sua mão esquerda. Provavelmente está fechada agora, não está?
Não preciso olhar. Está, sim. Ele sabe.
? Agora abra a mão e relaxe.
Eu abro a mão e relaxo. "
"Nunca vou me esquecer do que você me fez. Nunca vou perdoar. Nunca chegará ao fim o luto por aquilo que você roubou de mim. Mas percebo agora que não tenho como roubar de volta, e já cansei de passar todos os meus dias tentando. Nunca vou parar de odiá-lo, mas não preciso mais machucá-lo. Acho que consigo acreditar nas coisas apesar de você; ou talvez consiga acreditar por sua causa. Se você é capaz de refazer a sua vida, talvez eu também seja."
"Nada está perfeito. Não chega nem a estar bom ainda. Mas talvez.
E, depois de cinco semanas, eu volto para casa."
"? Olá... ? diz a Sra. Leighton, de olhos arregalados, quando entro na cozinha sem nenhuma peça de roupa que seja preta, carregando o mesmo bolo de chocolate que trouxe da primeira vez que jantei aqui.
? Emilia ? preencho a pausa, porque todo mundo ainda está tentando descobrir como deve me chamar; exceto Josh talvez, que sempre soube.
? Emilia ? diz ela e me abraça. ? Você tem uma voz linda."
"Apenas me olha como se meu rosto fosse lhe dizer de onde vêm e o que significam. E talvez até diga mesmo, mas espero que ele pergunte. Aguardo a expressão de confusão ou reticência em seus olhos, mas ela nunca vem. Em vez disso, ele limpa a última lágrima com os dedos.
? Não tem [*****] preta ? diz ele.
E eu sorrio."
"? Me responda uma coisa ? diz Josh um mês depois de eu voltar.
? Eu já respondi tudo, Josh. Não sobrou nenhuma pergunta.
? Só uma ? diz ele,? O que você viu quando morreu? .
Ele dá um meio sorriso, incerto, como se estivesse quase com vergonha de perguntar.
? Porque eu acho que não foi o Mar da Tranquilidade.
E, quando olho para ele, não tenho tanta certeza de que não foi.
? Para onde você foi? ? insiste.
Quase consigo ver as palavras de seu avô e as dúvidas de Josh sobre aquela história pairando em sua cabeça. Ao meu redor estão as luzes, as ferramentas, a madeira, as botas e o garoto que eu quero ver para sempre. E se meu Mar da Tranquilidade fosse de verdade, seria este lugar aqui, com ele.
Não digo nada imediatamente, pois quero apenas um instante para olhar para ele antes de lhe revelar meu último segredo:
? Para a sua garagem."